Ripley
Uma psicológica viagem por vários tons
Por Fabricio Duque
Diferente dos longas-metragens, visto que há uma maior necessidade de síntese das obras abordadas, por causa de sua duração reduzida, um seriado consegue estender e aprofundar a história com muito mais nuances. Se antes, as séries traziam características mais intrínsecas da experiência televisiva, agora nós podemos perceber que essa distância foi estreita com uma visão cinematográfica mais estética em sua criação. Um desses melhores exemplos é a nova série da Netflix, “Ripley”, baseada no romance “O Talentoso Ripley”, de 1955, da autora norteamericana Patricia Highsmith, famoso por seus thrillers criminais pelo viés psicológicos e existencialista, ao humanizar a identidade de suas personagens, inclusive questionando suas moralidades. A escritora, do Texas, constrói uma atmosfera noir que acontece por detalhes e por desdobramentos das situações geradas. É como se ela aceitasse perder o controle da própria escrita e fosse conduzida por todo um acaso desencadeado. Tanto que o próprio Alfred Hitchcock a “usou” em “Pacto Sinistro” (1951). Há em suas obras uma morbidez coloquial, um realismo das camadas “escuridões internas” do ser humano, e isso tudo sem julgamentos cartesianos. Cada um se exerce em público de uma forma.
Em 1999, o realizador Anthony Minghella, com pais italianos, fez uma versão sobre essa personagem em questão aqui, “O Talentoso Ripley”, com Jude Law e Matt Damon. Se no filme do diretor britânico o foco narrativo estava na sexualidade obsessiva de Tom e na força mais espetaculosa dos crimes decorrentes (mais Hitchcock), aqui na série “Ripley”, criada pelo norteamericano Steven Zaillian (que foi roteirista de “Hannibal” – sequência de “O Silêncio dos Inocentes” – e “Gangues de Nova York”, e que aqui escreveu e dirigiu todos os episódios), a condução é completamente desenvolvida pela sociopatia “sobrevivente” do protagonista, que busca fama e sucesso por trambiques, numa narrativa altamente psicanalítica, esta especialmente quando Ripley não se importa, sem escrúpulo algum, em “manter” sua identidade “original”. E é isso, nesse ponto que “Ripley”, o seriado, e o livro de Highsmith, se unem. O diretor evoca em tela uma personificação do noir, por meio de uma estética fotografia em preto-e-branco, em planos artísticos que não só pausam a realidade (para que possamos observá-la melhor e sem pressa), como capturam a metafísica do exato momento que recebemos a imagem, esta que se manifesta em “viagem-processo” na Itália, por contemplações editadas e não convencionais.
Sim, “Ripley” moderniza com uma naturalista elegância hipster o conceito do Renascimento Italiano, que marca a transição das Idades Média e Moderna. Ao trazer isso, em capítulos, num misto do período barroco de Caravaggio (o Michelangelo – que pintou a Capela Sistina em Roma – e que era “brilhante e perigoso”) com o cubismo de Picasso, entre o cotidiano diário, que conserva a atemporalidade (por causa de todo o cenário conservado do passado italiano), nossa personagem “Ripley” é dotada de conhecimento em um naturalizado comportamento. É como se ele, um americano, aprendesse na Itália o que é viver, ainda que de forma “facilitada” (pelo dinheiro dos outros”) e sem preocupações morais. Tom Ripley (vivido pelo ator irlandês Andrew Scott – que se tornou um “fetiche queridinho”, especialmente por sua participação como “padre sexy” em “Fleabag”, por ter se assumido bissexual e por ter trazido outro ator “fetiche”, o britânico Paul Mescal, para dividir par interpretativo em “Todos Nós Desconhecidos”) é a representação máxima de como o ser humano existe em sociedade. Em um dos momentos da série, com oito episódios, em uma média de uma hora cada um, o protagonista ouve que tudo em Caravaggio é luz. É essa iluminação que encanta, afasta e ressignifica percepções, entre quebras da quarta parede (em versão mais Neorrealista Italiano). Sim, “Ripley” já é considerada uma das melhores séries de todos os tempos, não só por nos fazer viajar pela Itália, mas principalmente por todo seu apuro técnico na construção das imagens, no seu tempo narrativo de descrever personagens por detalhes e reações mais idiossincráticas (que as definem em subjetivos padrões existencialistas).
“Ripley” é um mergulho pelo psicológico das obras de arte. Tom é o próprio renascimento. É toda essa fermentação cultural. Um autônomo. Um nômade de si mesmo, num “jogo” (em que a vida se iguala à morte) internamente sutil e sinistro. Uma figura tão complexa e identificável, que nós torcemos explicitamente por ele. Por que isso acontece? Será que somos iguais a ele? Lógico que sim, mas em níveis e tons diferentes. Sim, há um prazer nisso tudo. Uma transcendente libertação mental que se argumenta nos princípios clássicos da Igreja para assim reconfigurar seu pensamento filosófico-religioso-cristão, mas sem a noção de culpa, de pecado, de inferno e se abstendo completamente do “homem comum que considerava a si mesmo como sendo um ser abjeto e cujo Deus era um tirano furioso e implacável”. Não sei se vocês se recordam, mas em 2002, o ator John Malkovich viveu Tom Ripley no filme “O Retorno do Talentoso Ripley”, dirigido pela italiana Liliana Cavani. E aqui na série, também temos John Malkovich como “ajudante”. Será essa uma dica e um gancho para a segunda temporada? Sim, todos nós somos feitos à luz e à imagem de Thomas Ripley.