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Regra 34

Se isso existe, tem pornografia. Sem exceções.

Por João Lanari Bo

Festival de Locarno 2022

Regra 34

Regra 34”: o título do filme que Julia Murat realizou em 2022 já é uma ironia, claro, mas carregada de ambiguidade e por isso mesmo de tensão. Soa, prima facie, como regramento jurídico, algo que contem coerção, exercício de autoridade; a realidade do termo é o seu oposto, melhor dizendo, é uma espécie de coerção anárquica – trata-se de um dito popularizado na internet, tudo o que existe produzirá rapidamente um equivalente pornô. Não se sabe quem foi o cabotino que consagrou a alcunha – a infalível Wikipedia tem sua versão – o que importa aqui é sublinhar o conflito subjacente da expressão que, em última análise, informa e carrega o filme. Instalado na mente (e no corpo) da personagem Simone, o conflito aponta e cutuca direções, recua e consolida posições. Um verso de Ovídio, tirado de Metamorfoses, formaliza de modo elegante essa, digamos, instabilidade:

É muito o que falta para cumprir meu desejo: é pouco para ser crime

Simone – notável atuação da atriz e ativista Sol Miranda – debate e estuda Direito durante o dia e trabalha como camgirl à noite. Sua vida afetiva é pontuada por visitas de colegas (e amantes casuais), além de videochamadas de uma amiga em São Paulo, experiente em BDSM – conjunto de práticas consensuais envolvendo bondage e disciplina, dominação e submissão, sadomasoquismo e outros tipos de práticas afins. E o ápice do gozo: sessões noturnas via Chaturbate, o site que proporciona o ato de te masturbares enquanto conversas online (a tradução automática do site parece ter privilegiado o português de Portugal). A página, que se gaba de ser um local de bate-papo adulto, 100% gratuito e sem censura, coloca em contato amadores, exibicionistas, pornstars c/ HD Video, estampando logo no alto: how to be a vulnerable.

Simone estuda para aperfeiçoar sua carreira de defensora pública, que visa sobretudo a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, dos necessitados. “Regra 34” assume, nessas sequências onde todos, brancos e negros, estão vestidos de terno e gravata (homens) e tailleurs alinhados (mulheres), um tom propedêutico: nós, os espectadores, aprendemos como aprendem os estudantes, sobre os dilemas e as agruras do exercício do direito numa sociedade patriarcal e injusta como a brasileira. O feminicídio – a cada duas horas, uma mulher é assassinada – é um dos pontos focais da discussão, pontuada de abstrações como se espera de um ambiente desses. A relação entre a teoria funcionalista e as culturas criminosas não é de exclusão recíproca, interroga-se Simone, de volta ao seu apartamento — e por detrás de sua imagem identificamos um vibrador rosa brilhante.

O narcisismo masoquista propalado pelo Chaturbate é mais do que fonte de atração para Simone, é também remuneração: os membros da comunidade podem optar por depositar dinheiro na Plataforma, que será convertido em tokens eventualmente utilizados como gorjeta para os broadcasters independentes. Se a bifurcação existencial tem algum peso na vida da personagem – a consciência aguda da violência de gênero confrontada com a expansão dos seus desejos eróticos – paulatinamente assistimos a um esvaecimento da razão jurídica em favor dos impulsos que ela, Simone, parece não querer mais controlar. Perseguir o gozo através do asfixiamento é perigoso, lembra a amiga paulista: nesse mundo de pulsões e violências, regras não existem e a decisão dos limites é individual. O limite é a cópula entre vida e morte, o gozo final.

Regra 34” ganhou o Leopardo de Ouro no Festival de Locarno, tradicional certame de cinema independente – desde 1967, com “Terra em Transe”, a produção brasileira não ganhava prêmio na comuna suíça. É uma conquista e tanto para esse filme espacial e socialmente carioca, que mostra um Rio de Janeiro estilisticamente convencional, mas que se contenta em permanecer incongruente. Talvez seja essa a melhor sacada, uma narrativa ambígua e contraditória que desagua numa incompletude – se a experiência de Simone é contingente, ou seja, circunstancial ou que pode acontecer por acaso, afigura-se a possibilidade da incompletude, da qualidade do que está ou é incompleto. Simone oscila entre a lascívia e prudência sexual, entre o real e o virtual: entre mulheres (donas de casa, em sua maioria) abusadas física e psicologicamente e a retórica sadomasoquista das fantasias online. Não há convergência possível de se imaginar entre os dois mundos em que ela habita – mas há a possibilidade de convivência desses contrários, de alguma forma, tal como acontece no fluxo diário da metrópole.

4 Nota do Crítico 5 1

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