Red: Crescer é uma Fera
Multiculturalismo à moda Disney
Por Pedro Mesquita
Verifica-se nos últimos anos uma crescente preocupação, por parte dos grandes estúdios norte-americanos, com a realização de obras que falem em nome de minorias historicamente marginalizadas, afirmando e celebrando a diversidade contida no território da nação. Se na história do cinema não faltam exemplos de filmes que representam, sob o ponto de vista do homem branco, o aspecto irremediavelmente cindido da população americana, seja enaltecendo essa cisão, seja lamentando-a — de “O Nascimento De Uma Nação” (D.W. Griffith, 1915) até “Rastros de Ódio” (John Ford, 1956) —, parte da produção atual toma uma outra abordagem e retrata a experiência americana por olhares considerados não hegemônicos. Não faltam exemplos para comprovar essa tendência: “Pantera Negra” (Ryan Coogler, 2018), por exemplo, realiza essa inversão de perspectiva, tratando das dores da diáspora africana.
Qual é, então, a contribuição de “Red: Crescer é uma Fera” para essa linhagem? Pois bem, neste filme está em jogo a ideia de que a migração é um ato intrinsecamente violento, do ponto de vista cultural; que ela implica abandonar parte da sua essência para melhor adequar-se ao local para onde se imigrou.
Meilin (Rosalie Chiang) é uma menina sino-canadense que mora com sua família em Toronto. Situando-se no ponto de intersecção entre ambas culturas, ela é uma autêntica cidadã canadense — ela se comporta da mesma maneira como todas as outras garotas da sua idade, o que, no filme, é simbolizado pela sua devoção ao grupo musical fictício “4-Town” — ao mesmo tempo que se mantém fortemente atrelada aos valores chineses, em parte por ordens de sua mãe super protetora (Sandra Oh).
Um dia, um evento inesperado vem se intrometer na vida regular de Meilin: ela descobre que herdou de sua família a capacidade de se transformar num gigante panda-vermelho toda vez que sente alguma emoção intensa. Inicialmente arrasada, ela aprende, com o tempo, a controlar as suas emoções e passa a ter um certo grau de agência sobre quando essa transformação acontece. Uma ideia que lhe ocorre, então, é a de capitalizar em cima dessa novidade: já que todos à sua volta acham o panda uma criatura muito fofa, ela passa a cobrar para que pessoas tirem fotos com ele, aproveitando-se de um aspecto da cultura chinesa que os locais consideram exóticos.
Parece irônico que essa situação seja pintada, no filme, em tom de crítica, pois pode-se argumentar que é exatamente isso o que faz a própria Disney com a internacionalização de suas produções: a exploração de culturas diferentes como estratégia comercial; como pretexto para reivindicar para si o rótulo da “diversidade” (lembremos, aqui, de outros títulos recentes, como “Viva: A Vida é Uma Festa” (2017), “Luca” (2021) ou “Encanto” (2021)). Resta questionar o quão realmente diversos esses filmes são, para além da categoria da “representatividade”.
O que se pretende criticar aqui é a noção de que obras como “Red: Crescer é uma Fera” apresentam algo de radicalmente diferente do resto da produção em larga escala dos grandes estúdios norte-americanos. A representatividade de grupos pouco retratados tem sim a sua importância, mas reduz a discussão dos filmes apenas ao nível do conteúdo. Troquemos, por um instante, a palavra “representatividade” por “representação” e mudemos um pouco o foco da investigação: como são representadas as personagens e as situações do filme? Ora, sob a mesma estética “globalizada” vista desde sempre nos filmes dessa natureza. A narrativa perfeitamente estruturada segundo as convenções de manuais de roteiro; a decupagem analítica herdada do cinema live-action (aqui, potencializada pela maleabilidade própria à técnica de animação); a música onipresente que guia o espectador; a quebra da quarta parede e a ironia (utilizadas à exaustão em filmes de similar apelo lúdico)… o que, à primeira vista, poderia parecer um filme excepcional — no sentido de representar uma exceção ao resto da produção atual — revela-se, na verdade, um filme todo limitado por regras definidas a priori sobre como construir um filme de sucesso. Onde está a diversidade aí?
O filme se encerra, como não poderia deixar de ser, com a personagem compreendendo que não se deve renegar as suas origens: apesar de passar toda a narrativa decidida a eventualmente se livrar daquela “maldição” (por meio de um ritual que separaria de si o espírito do panda-vermelho), Meilin aprende a aceitar esse seu lado diferente, entendendo que modificar-se artificialmente para agradar os outros significaria trair a sua essência.
Todo esse arco vivido pela personagem não deixa de ser minimamente cativante (e também o é de um ponto de vista visual; não se pode criticar “Red: Crescer é uma Fera” sem deixar de mencionar os momentos de beleza, esparsos mas ainda assim belos, que o permeiam: o momento em que ela descobre sua paixão por Devon; as conversas entre mãe e filha ao final…). Mas, voltando à ideia de uma estética globalizada: o “estilo Disney” de se fazer cinema já parece tão saturado que esses momentos, apesar de sua beleza, provocam não mais que um estímulo moderado.
Referenciando “Dom Casmurro”, podemos dizer que o objetivo de Meilin — o qual ela conquista, ao final do filme — é o de “atar as duas pontas da vida”: no romance de Machado de Assis, a personagem se referia à juventude e à velhice, mas, no caso de Meilin, as duas pontas por ela atadas são as suas origens chinesas e a sua vida canadense. Meilin aprende a ter orgulho do seu legado familiar sem renunciar o status de “cidadã do mundo”; aprende a amar o panda-vermelho dentro de si sem deixar de ser uma fã obcecada da boy band sensação do momento.
Em outras palavras, “Red: Crescer é uma Fera” é, intencionalmente ou não, um filme sobre a utopia que a Disney gostaria de criar para si mesma: um mundo fenotipicamente diverso, mas culturalmente homogêneo; um mundo segmentado em diferentes tribos, contanto que essas tribos saibam colocar suas diferenças de lado para ir todas juntas ao cinema nos finais de semana assistir a mais um produto Disney.