Festival Curta Campos do Jordao

Quem Pode Jogar?

Desconstruindo performances

Por Fabricio Duque

Durante o Festival Mix Brasil 2020

Quem Pode Jogar?

Desafios. Palavra no plural que todo e qualquer atleta enfrenta na carreira e na vida a fim de transpassar as barreiras da superação e conseguir a tão almejada vitória e reconhecimento. Contudo, há aqueles que ainda precisam quebrar “as pedras do muro” por serem transgêneros, simbolismos constituídos por uma sociedade binária. No filme do realizador Marcos Ribeiro, “Quem Pode Jogar?” (2020), exibido na edição online do Festival Mix Brasil 2020, nós espectadores somos inseridos na percepção de que cada um desses seres humanos, enquanto indivíduos sociais, é obrigado a lutar contra o oponente  do imaginário empírico (de acreditar apenas em dois tipos de existir: o homem e a mulher), pensamento este enraizado por séculos (pela religião e/ou pelo conservadorismo do medo de se expor como se realmente já nasceu sendo) e que resolveu padronizar regras e comportamentos, aprisionando assim os “olhos livres” fora do pódio. No filme “Apocalypse Now”, de Francis Ford Coppola, um personagem, envolto em sua guerra particular e já desesperançoso-resignado com a humanidade, diz que “É o julgar que nos derrota”, cuja frase pode fornecer diretriz à problematização machista de estigmatizar tudo o que se é diferente e “estranho”. Sim, todos esses atletas e todas essas atletas enfrentam o preconceito dos outros não mais como uma competição, e sim como uma “causa”.

“Quem Pode Jogar?” é um documentário jornalístico, pela forma como se desenvolve. A estrutura clássica de entrevistas Talking Heads é conduzida por Helena Lara Resende, também roteirista, que se faz presente, omitindo opiniões e as endereçando como perguntas a seus atletas-personagens, com o intuito de extrair uma verdade pelo viés da tradução-anamnese afetiva. Busca-se entender o preconceito e a motivação do continuar pelas histórias, ora contadas à frente da câmera, ora em voz over, que preenchem o tempo da contemplação observacional, como se fosse um estudo de caso e uma avaliação técnica de conduta e aptidão. No documentário “Maria Luiza”, sobre a primeira transexual das História das forças armadas brasileiras, o diretor Marcelo Díaz é “confrontado” com uma pergunta do personagem-ator-transgênero Gabriel Graça, psiquiatra e professor da Universidade de Brasília. “Como você se identifica como homem e o que faz você se sentir um homem?”, o perguntado tenta encontrar perdidos e confusos embasamentos e no final, com sinceridade, responde “Não sei”. Sim, isso porque nós cisgêneros nunca questionamos o contrário. Mas se pararmos para analisar por um instante, então nos daremos conta de que seria muito simplista (radicalmente cruel) determinar a existência de alguém por uma imposição de uma sociedade que representa apenas um espelho majoritário de ideias arraigadas-amalgamadas de um povo. E não pelo fator psicológico-biológico.

O longa-metragem acompanha quatro personagens, além de outros “coadjuvantes” para fornecer a atmosfera de cotidiano. De vida acontecendo. Ainda que algumas cenas sejam mais como um jogo teatral (à moda Eduardo Coutinho, por tirar do improviso um discurso), como a visita ao médico, os treinos mostrados são pesados e não suavizados. Testa-se limites. Fala-se dos hormônios. Da testosterona. E do “extermínio” da identidade. A disforia de gênero é conduzida pela superfície da definição. Quase didática e direcionada aos mais iniciantes, inserindo informações pontuais e com doses homeopáticas sobre as limitações, egos, individualidades compartilhadas, obstáculos, dificuldades, julgamentos, aparências, perseverança do não desistir e aceitação dos que “concordam com o regulamento”. Neste caminho, as “alianças” são primordiais, como a Eliane Cerâmica do Brasil que “veste a camisa”. “Ela não é só uma atleta, é uma causa, uma postura feminina, uma figura na Sociedade”, diz-se em um meio de busca à violência, como o MMA, talvez uma forma forma de extravasar a raiva de todos os percalços potencializados.

Nós conseguimos perceber também em “Quem Pode Jogar?” o que é “destoante”. Um gesto mais masculino de um homem Trans para “performar seu gênero e sua aparência” perante à liberdade do fora, termo estudado pelo filósofa Judith Butler. O que vemos são desconstruções sociais e rachaduras de um mundo que já se transformou há muito tempo. E que não se sabe o porquê encontra resistência, palavra esta, de opinião idiossincrática, que reverbera um egoísmo latente (o de impor uma única forma de ser e de “felicidade”). “Já é difícil ser atleta no Brasil, imagine para os(as) transexuais, preocupados(as) em sobreviver ao tratamento que recebe na rua”, diz um competidor gay. Todo o filme é embalado por um tom de transcendência etérea dos treinos e por uma trilha-sonora fabular que nos remete ao filme “Minha Vida em Cor-de-Rosa”, de Alain Berliner. Concluindo então, a pergunta título “Quem Pode Jogar?” só pode ser respondido com um desaforamento passional: Quando as pessoas pararem de se preocupar com a vida alheia. Por que se julga tanto? Por que o diferente incomoda? Alguns seguem e conseguem realizar seus sonhos, outros, sem coragem, tentam minar-atrapalhar-destruí-los, como naquela história do golfe em que se fala para desconcentrar. Game over? De forma algumas. Muitas fases-batalhas para jogar ainda. Continua…

3 Nota do Crítico 5 1

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