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Pssica

A gentrificação da violência

Por João Lanari Bo

Pssica

Gentrificação: o termo foi inventado por urbanistas para caracterizar a transformação de áreas urbanas antes consideradas menos valorizadas em bairros mais caros e “nobres”, elevando o custo de vida e tornando a região inacessível para antigos moradores de baixa renda. Por um deslocamento semântico astucioso, críticos passaram a usar o termo para designar filmes e séries em que a exploração da violência seja acompanhada por uma retórica vinculada ao social, com fins de lucro. Em 2001, no artigo “Da estética à cosmética da Fome”, Ivana Bentes já notava: “da ideia na cabeça e da câmera na mão (um corpo-a-corpo com o real) ao steadicam, a câmera que surfa sobre a realidade, signo de um discurso que valoriza o ‘belo’ e a ‘qualidade’ da imagem, ou ainda, o domínio da técnica e da narrativa clássica”.

Pssica”, a série produzida pela O2 e dirigida por Quico Meirelles (filho do Fernando, um dos produtores), é exatamente isso: espetacularização da violência estilo “pacote” Netflix, com algoritmos, personagens, imagens, edição e gatilhos adequados aos vorazes consumidores no streaming. E o faz com competência indiscutível: o que importa é captar a audiência num ambiente altamente competitivo (e lucrativo), e enunciar um discurso sobre violência com detalhes diferenciadores – geografia (Marajó, Belém, Caiena), criminalidade (os ratos d’água, que usam jet-skis para roubar cargas nos rios), e internacionalização da trama. Mariangel, personagem da atriz Marleyda Soto, é uma sobrevivente dos intermináveis conflitos colombianos que mora num bar/mercearia no meio do rio, em frente a Belém; e Philippe Soutin (Welket Bungué), é um cafetão poliglota que circula entre Caiena, Marajó e Belém.

Marajó, essa imensa ilha que abriga uma natureza belíssima – como insistem os slogans publicitários – pode abrigar também uma complexa teia que envolve tráfico de mulheres, prostituição, gangues armadas, drogas, comércio ilegal e, last but not least, corrupção. “Pssica” tem tudo isso, propõe-se a trazer a “Amazônia sombria para sua tela”, como informa o a assessoria de imprensa: Pssica, uma gíria típica do Pará, significa azar, maldição, encosto dos brabos — e a série leva esse conceito até o último episódio. Percebe-se uma estratégia de utilizar o cenário como um território mítico inexplorado em termos audiovisuais, e em certa medida é mesmo: trata-se de um mundo à parte, longe do imaginário urbano convencional brasileiro.

O diabo mora nos detalhes, diz a sabedoria popular. É na construção dos personagens onde evidencia-se o uso de clichês com o objetivo de situar o espectador numa zona confortável, compreensível e codificada para consumo. Janalice, a heroína-adolescente vivida por Domithila Cattete, abre a história sofrendo bullying na escola depois do namorado postar vídeo dela fazendo sexo oral; sua trajetória a seguir é, ou seria, uma descida aos infernos. Cenas com um realismo pasteurizado, além de alguma limitação da jovem e empenhada atriz, mitigam o impacto e reforçam a gentrificação. Eclosões de violência previsíveis e artificiais diluem a ansiedade do thriller. E Lucas Galvino, que encarna Preá, herdeiro da gangue, tem dificuldades para convencer sobre sua transição de inseguro criminoso a obsessivo apaixonado por Janalice.

Mas essas são observações pontuais, que não diminuem a força e eficácia do produto, a minissérie em quatro episódios “Pssica”. Um dos méritos é a escolha do romance “noir” paraense homônimo, escrito por Edyr Augusto, como base do roteiro – o livro tem apenas 96 páginas. Frase curtas e grossas, na tradição da melhor literatura urbana brasileira, que remonta aos contos econômicos e cruéis de “Feliz Ano Novo” (1975), de Rubem Fonseca – a observação é de Wilson Alves-Bezerra, quando do lançamento da obra. O crítico vai mais longe, comparando Janalice com Justine, a célebre personagem do Marquês de Sade, “cujo corpo é tomado à força por quem assim o quiser, sem que isso cause estranheza ao entorno”.

Descontado o exagero rebuscado, seria uma leitura curiosa. Recorde-se os exageros para lá de retóricos da Senadora Damares, quando denunciou que crianças de Marajó tinham dentes arrancados à força para facilitar futuro sexo oral – e utilizando para isso um vídeo grotesco, com imagens gravadas originalmente no Uzbequistão. Damares – à época da denúncia atuando como Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo Bolsonaro – talvez se encaixasse também no roteiro sádico-literário proposto pelo crítico do Globo.

Finalmente, sublinhe-se a atualidade da série com a realização da COP30 em Belém, de 10 a 21 de novembro de 2025. A capital paraense enfim globalizada, para o bem e para o mal.

3 Nota do Crítico 5 1

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