Protejam Essa Laje
Neomaneirismo digital e a preservação do cinema
Por Michel Araújo
Durante o Festival Ecrã 2019
Tendo acesso a um acervo digital imenso nos dias de hoje, podemos de certa forma nos reconfortar com relação à preservação das obras cinematográficas que encontraram caminho até a rede mundial de computadores. Esse acervo, no entanto, representa apenas uma fração pequena de todas as obras cinematográficas que deveriam ter encontrado vias de se manter para a posteridade.
Não há, no Brasil, uma política pública de preservação e restauração, e muitos filmes já se perderam ou correm risco de serem perdidos em vista disso. Os filmes em película sofreram um crepúsculo tenebroso quando se tornaram praticamente obsoletos para a grande indústria, em vista da era digital. Um filme digital pode facilmente ser preservado com algumas dezenas de cópias espalhadas em memórias físicas ou em nuvem.
Um filme em película é algo físico, tem que ser quimicamente tratado, e não é replicado com um mero atalho de ctrl + C e ctrl + V. Os filmes cujas cópias remanescentes se encontram apenas em película correm, portanto, sério perigo de deterioração e mesmo extinção caso não haja uma infraestrutura decente para seus devidos cuidados.
Nutrindo uma sensibilidade íntima com o tema da preservação não apenas física e infraestrutural dos filmes, mas também sua preservação cultural, o curta-metragem experimental
“Protejam Essa Laje” (2019), de Gabriel Papaléo, dialoga diretamente com um extenso acervo de curtas-metragens experimentais – campo da produção cinematográfica talvez mais marginalizado justamente por seu formato e linguagem. Para além das reflexões em voz over do próprio Papaléo acerca da fatal evanescência dessas imagens, o diálogo direto das próprias imagens já implica um acesso direto possibilitado pela disseminação digital dessas obras.
Se é possível agregar, por exemplo, “Meshes of The Afternoon” (1943), “A Portrait of Ga” (1952), “La Chambre” (1972) e “Viola Chinesa” (1977) – só para citar alguns dos exemplos presentes no filme – em uma nova obra, sem mesmo ter que sair de casa para obter acesso às cópias, se faz evidente uma nova potência de revisitação e mesmo recontextualização de nossa memória cinematográfica digitalmente preservada.
As cópias digitais permitem um diálogo para além do maneirismo de um DePalma que retrabalha os grandes motivos ou tramas da história do cinema num contexto duplamente significado por sua referência, e para além mesmo do experimentalismo da escola vienense de Peter Tscherkassky e Martin Arnold que corrompiam excertos de película de outros filmes como em “Outer Space” (1999) ou “Passage a l’acte” (1993).
É possível acumular filme sobre filme, tal qual fotograma sobre fotograma, numa velocidade e massividade quase inapreensíveis. Essa potência é aqui denominada “neomaneirismo digital”, uma nova forma de extrapolar com o clássico e o moderno que precederam o contemporâneo. No contexto de “Protejam Essa Laje”, o maneirismo que é definido pelo historiador da arte Arnold Hauser como “expressão do medo de que a forma venha a cair na luta com a vida, e de que a arte venha a se desvanecer numa beleza sem conteúdo”, se torna tão mais evidente.
A questão é, entretanto, como a preservação e principalmente a valorização cultural das obras com as quais dialoga – curtas-metragens experimentais – irão impedir um apagamento ou mesmo esvaziamento conceitual das artes nas concepções da posteridade. O discurso verbal é assumidamente político e frontal com relação a preservação patrimonial. O discurso cinematográfico de “Protejam Essa Laje” , no entanto, remete a esse outro lado, a essa nova potência expressiva que surgiu da crepusculação de outra.
A placa do Museu Nacional do Brasil surge ao início – e mesmo intitula a obra – como um fantasma já descontextualizado. Se tornarão também fantasmas as diversas outras imagens que aqui dialogam? Ou já se tornaram?