Mostra LC Barreto de Curtas 2024

Propriedade

Por quem você está torcendo?

Por Fabricio Duque

Durante o Festival do Rio 2022

Propriedade

Ainda bem que o objetivo maior do cinema é criar questionamentos, especialmente quando aborda temas mais controversos e não unânimes, que chegam a beirar a polêmica, bagunçar nossas convicções, moralismos e hipocrisias enquanto seres humanos trocando relações no meio social. “Propriedade”, do realizador brasileiro Daniel Bandeira, é um desses exemplos ao evocar a própria percepção que temos sobre nossa sociedade, cujos indivíduos existem por causas, condicionamentos estruturais e consequências geradas de uma parcela majoritária, que em um determinado momento do passado definiu comportamentos pelo maniqueísmo do certo ou errado. Este é outro filme que demorou a ter sua análise, porque respostas a muitas perguntas não paravam de chegar, como, por exemplo: Será “Propriedade” uma obra crítica sobre um novo Brasil? Mas de que lado o filme está: esquerda, direita ou na contramão da História? Ou será apenas um integrante de um filme de ação que usa o tabu para construir burburinho? Confesso que na primeira vez que assisti não pensei em nada disso, mas pela magia do mundo, a de ressignificar ideias por encontrar lógica em outras opiniões, este longa-metragem voltou à estaca zero na escala de pensamentos. Pois é, mas o confronto sempre chega e hoje é o dia. 

“Propriedade” pode ser facilmente traduzido como um filme sobre uma luta de classes. De um lado, os patrões. Do outro, os empregados. De um lado, os afortunados que podem chorar por seus dramas. Do outro, funcionários quase em regime de neo-escravidão. Aqui, a mensagem emanada é pela humanização. De que até os ricos também sofrem. E pela revolução anárquica, em que os pobres trabalhadores decidem revidar o tratamento de seus empregadores e acabar com a subserviência, mesmo tendo alguns dos seus que “debandaram” para o outro lado, os modernizados “capitães do mato”. Viu como não é fácil escrever este texto? E muito mais porque escrevo tudo na comemoração do feriado de Tiradentes, ícone da Inconfidência Mineira. É preciso repensar todos esses anos de relações de co-dependência destrutiva a fim de instituir paradigmas e novas soluções. Não, definitivamente não estou preparado ainda. Contudo, sobre “Propriedade”, exibido inclusive no Festival de Berlim 2023, após sua estreia no Festival do Rio e na Mostra de São Paulo 2022, pode-se dizer que é tecnicamente irretocável. Câmera, fotografia e a força de sua narrativa (dinâmica nos ângulos e nos cortes), que está em manter sua atmosfera de tensão. Nós somos imersos no desespero da sobrevivência da protagonista, interpretada pela atriz Malu Galli, que dentro do carro  blindado (desculpe-me o spoiler!) congela o espectador na iminência da “vingança”, esta vista pelos funcionários “amadores”, “primitivos”, “imprudentes”, impulsivos e “raivosos”, que se rebelam porque ouviram falar que serão demitidos. E que gera novamente “trauma da violência” já vivido. “Tradição é aquilo que é”, diz-se. 

O que se quer em “Propriedade”? Igualar os motivos dos acontecimentos da fazenda ao o que aconteceu antes. Sim, não tinha percebido, mas o filme faz de novo: coloca os pobres e os negros em uma radical situação de “vencer pegando em armas”. De mostrar o valor pela força. Tá! Vamos retornar à análise sobre a forma. “Propriedade” constrói sua narrativa pelo sensorial, personificando o que não se vê, como o som, a sensação de pânico e o tempo que nunca vemos. É potencializado assim, o abstrato da percepção cotidiana, por exemplo a observação silenciosa de dentro do vidro anti-barulho. Usa-se o coloquialismo do real para criar a naturalidade ficcional. Sim, mas como nada é perfeito, o filme traz elementos mais confortáveis e característicos das novelas populares, de fácil assimilação, começando assim a explicar didaticamente o os efeitos psicológicos, sentimentais e emocionais dessa violência e do confuso perigo iminente. E pelas reviravoltas mais apressadas, afoitas e fora de tom do roteiro. Tá, é impossível não retornar a ideias que aparentemente deveriam estar esquecidas e perguntar: Que lado você está? A resposta dirá muito sobre que Brasil nós partilhamos hoje. 

Ainda durante “Propriedade”, não parava de pensar que este poderia muito ser um “Bacurau” que deu certo. Pela temática semelhante, pela questão pungente (de ferida ainda aberta), da luta de classe que escolhe “fazer justiça pelas próprias mãos” e a reparação por tudo que sentiram na pele. Mas “Propriedade” talvez não seja nada disso, talvez não queira levantar nenhuma polêmica dessa, talvez apenas seja um filme de gênero de ação (com ótimas cenas, a de empurrar o carro, por exemplo), que se apropria do social para complementar a trama, da mesma forma que quase todos os exemplares norteamericanos desse tipo fazem. Pode-se falar e/ou gritar sobre este filme, mas nunca que “Propriedade” não causa desconforto e que não amplia a discussão sobre o tema do estrutural versus conservadorismo.  Sentimos raiva, pena e nervosismo (mas de quem?). Tudo porque o público torce por ela, pela protagonista branca e rica, contra os pobres. Por que será? Por que isso tudo está tão entranhado em nossas convicções sociais? Por que um tema desse ainda é abordado em 2022? Depois de tudo, é por isso que “Propriedade” precisa ser assistido, para que cada um possa ter essa subjetiva experiência antropológica de descobrir em qual lado se encontra. 

4 Nota do Crítico 5 1

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