Priscilla
Solitária em Graceland
Por Pedro Sales
Festival de Veneza 2023
Nos contos de fadas, o sonho das personagens quase sempre é encontrar o príncipe encantado. Esse caráter romântico e idealizado, porém, ganha outros contornos na vida real. Quando uma jovem adolescente se apaixona por um rei será que a história terá um final feliz? A diretora Sofia Coppola, em “Maria Antonieta” já havia tratado dos desafios do relacionamento na realeza, sobretudo à luz da solidão da personagem-título. No novo filme da cineasta, “Priscilla“, a França pré-revolução dá espaço aos Estados Unidos dos anos 60, no conturbado romance do Rei do Rock, Elvis Presley, e sua esposa Priscilla. Baseado no livro de memórias “Elvis and Me”, Coppola despe toda a eventual conotação de contos de fadas que o relacionamento ganhou à época para escancarar os abusos, as incertezas e a solidão enfrentada por Priscilla, sendo assim uma obra calcada no intimismo.
Aos 14 anos, a jovem Priscilla Beaulieu (Cailee Spaeny) conhece Elvis Presley (Jacob Elordi), quando o astro do rock prestava serviço militar na Alemanha. Tão logo se viram pela primeira vez, começou uma paixão que culminou em um conturbado casamento, cujo principal fruto foi Lisa-Marie, única filha do casal. A diferença de idades entre os dois é evidenciada desde o início da rodagem como uma forma de poder, e os pais se tornam a última barreira entre os dois. Ele diz a ela que “é muito madura para a idade”, entre outras frases que muitas mulheres ouviram de homens mais velhos. No entanto, quando a paixão começa, Elvis deixa escapar seu temperamento controlador e obsessivo, dando início a uma dinâmica de poder aparentemente inescapável. Nesse sentido, a obra se assemelha a “Spencer” e “Jackie” no que tange à temática de mulheres sufocadas por influências e poderes. Em todos os três longas, as protagonistas devem aceitar certas atitudes a fim de manter a ordem.
A partir da forte influência de Elvis diante da protagonista, “Priscilla” se apresenta como um filme extremamente marcado pela solidão. A ausência dos pais no seu cárcere voluntário para Graceland e as sucessivas viagens do Rei do Rock na sua incursão em Hollywood são os principais fatores que fazem Priscilla solitária, uma mera esposa-troféu. A mise-en-scène de Sofia Coppola, então, parte muito das cenas internas. A vida da protagonista acontece em casa, basicamente. Mais especificamente no quarto. A rima visual de quando ela entra no quarto de Elvis pela primeira vez, ainda na Alemanha, e depois em Graceland reforçam o olhar curioso, mas na última vez é o olhar quase certo de quem vai passar uma boa parte da vida naquele espaço. A iluminação, por exemplo, é ambivalente, ou por meio dos abajures, ou pela luz natural entre as cortinas azuis da casa. Quando rompe-se finalmente a solidão e Priscilla pode ver Elvis, ela nunca o tem por inteiro, pois está sempre acompanhado dos “parças”, com quem ele mantém os fortes laços da masculinidade e da competição, na sinuca, nos tiros ou no futebol americano. Portanto, Priscilla vive uma eterna alienação dentro de casa: a solidão, a meia presença de Elvis e também a constante influência agressiva, que a transforma não só emocionalmente, mas fisicamente. A maquiagem, o cabelo e as roupas. Tudo deve estar ao gosto do rei.
Cailee Spaeny assimila muito bem a amplitude dramática da personagem. Inicialmente, o deslumbramento juvenil de se apaixonar por um ídolo, um sex-symbol, para depois avançar nos desgastes do relacionamento. O ciúme motivado pelas páginas de jornais e pelos bilhetes que Elvis guarda. O abuso de drogas, que esteve desde sempre entre os dois, a distância íntima na cama e o comportamento agressivo do esposo, que atirava objetos, gritava e se arrependia em tom conciliador. Dessa forma, a atuação de Spaeny absorve esses desafios, é contida, intimista, as poucas explosões se dão por amor, como confrontá-lo usando um vestido estampado. A escolha de Jacob Elordi como Elvis Presley também é extremamente acertada. Ele tem uma aura de estrela condizente com o representado, e a altura do ator (1,96m) materializa ainda mais simbolicamente as fragilidades de Priscilla diante do homem que ela ama, um rei dentro de seu próprio reino, Graceland, onde ela, no sonho de menina, lançou-se de uma vez, sem saber que poderia ser uma prisão.
“Priscilla” é um drama intenso apesar do claro intimismo evocado por Sofia Coppola. Nesse estudo de personagem, o público compartilha da solidão de Priscilla, uma rainha em um difícil casamento. A cineasta pontua muito bem a dinâmica de poder que atravessa a protagonista, do poder econômico – ela não pode trabalhar – ao cultural – ele decide o que ela pode ou não fazer. Apesar dos claros conflitos entre os dois serem a tônica do filme, há também os toques de conto de fadas, no que diz respeito à graciosidade do romance. Eles se fotografam, brincam e se filmam – em cenas que emulam a textura analógica. Portanto, Sofia jamais abdica da complexidade do relacionamento no longa, há uma representação dos dois extremos que marcaram o relacionamento de quase 13 anos, a contar do momento em que os dois se conheceram pela primeira vez, e do retorno de Priscilla para si mesma, sem a maquiagem ou cabelo pintado.