Prazer em Conhecer
Mata a cobra e mostra o pau
Por Fabricio Duque
Durante o Festival Mix Brasil 2020
A realizadora, predominantemente documentarista, Susanna Lira (especial AQUI) corrobora, em seu mais recente filme “Prazer em Conhecer”, em exibição online no Festival Mix Brasil 2020, a característica essencial de suas obras, que é tornar a vida humana mais orgânica enquanto parte integrante da sociedade. O que se está em pauta é o meio em que esses indivíduos “marginalizados” vivem e expõem seus desejos mais intrínsecos, vistos como “fase fetiche”. A frase dita “É o julgar que nos derrota” em “Apocalypse Now”, de Francis Ford Coppola, pode fornecer diretriz e causa à problematização preconceituosa de estigmatizar tudo o que se é diferente e “estranho” a olhos padronizados, por um patrulhamento perdido, limitado e que gera fatalidades mentais e físicas. Em um de suas postagens nas redes sociais, Susanna disse que “feito é melhor que perfeito” e que em uma entrevista antiga ao Vertentes do Cinema definiu seus trabalhos como “urgentes”.
Sim, “Prazer em Conhecer” é um filme urgente. Uma obra de serviço social, porque apresenta informação não meramente empírica sobre o universo, muitas das vezes, desconhecido dos tratamentos de prevenção a Aids. Constrói-se assim não só um documento de utilidade pública como um longa-metragem que preza pelo respeito e não julgamento. Ouve-se. O que a sociedade (outro questionamento pertinente é se perguntar quem é esse grupo social definidor de normas e regras) não entende é que todo e qualquer ser já nasceu plural. Há quem não goste de comida com cebola, eu, por exemplo. Há aqueles(as) que se apaixonem por salsichas (sem trocadilho desta vez). E há os que conduzem suas existências pela felicidade e prazer do sexo. E é dessa forma que Susanna enxerga seus personagens. Com curiosidade primitiva, ingenuidade quase acumuladora de reeducar pela abordagem e com a técnica de uma câmera que em hipótese alguma quer se manter invisível (radicalmente contrária à câmera mosca de Frederick Wiseman). Esse atravessamento convida o espectador a imergir nesta encenação de si mesmo, de acompanhar ações que causam mais projeções comportamentais, podendo alterar a percepção da própria imagem a ser desmascarada, tudo potencializado pela trilha sonora de conexão entre realidade e projeção do real. O tom da música, produzido por Tito Gomes, que também fez com Fred França o som direto, causa leveza e suaviza o tema, por desmontar, sacudir e alinhar. Uma excitação não passional que “mata a cobra e mostra o pau”. O som representa o próprio ambiente, de psicodelismo coloquial Dub com Ethnoambient, música étnica acústica.
Quando nos permitimos adentrar, de corpo nu, em “Prazer e Conhecer”, nos é oferecido uma viagem para fora do armário pueril, quebrando tabus e moralismos enraizados (e não explicados de gênero). No documentário “Maria Luiza”, de Marcelo Diaz, uma personagem pergunta a seu diretor “como ele se identifica como homem” e a resposta é um “não sei”. O filósofo católico Santo Agostinho gastou anos de seus estudos para tentar traduzir o que é a essência de uma cadeira, por exemplo. A filósofa Judith Butler polemiza o próprio discurso de “performar o gênero” (que foi citado aqui por uma das personagens). Tudo pode e deve ser pinçado aqui para desembocar o contexto. Ao ser inserido a liberdade sexual das festas de sexo e a medicação “salvadora”, confrontos são alimentados. E ao informar que tudo isso pode ser possível sem danos pela PrEp (um antiviral que complementa a proteção na hora do ato sexual e que mostra a diminuição dos casos de HIV+) e PeP (após a exposição), “um colete salva-vidas” para “deslizes e descuidos”, então as rachaduras iniciais transformam-se em guerra “em nome de Deus” e “pedras” de “também pecadores” são atiradas na velocidade da luz. Ainda se encontra outros preconceitos e crimes, como o racismo, quando se tenta a “higienização das pessoas pelas raça”.
É aí que entra a maestria do filme, a de destinar o discurso não aos conscientes (já antenados com o novo mundo), mas, principalmente, aos negacionistas e aos que viveram anos às regras moralistas e hipócritas, recebendo de forma “pronta” (sem necessidade de revisitações) ideias alheias. “Não deixar sua saúde com o outro” é uma briga constante, talvez a questão mais importante do mundo. Especialmente aos pais e aos novos que “querem romantizar a relação”, entre destaque de um tatuagem de “Tudo Sobre Minha Mãe”, de Pedro Almodóvar. A praticidade deste pensar massifica mudanças. Novos olhares são brecados por culpas celestiais e medo de rotulações pejorativas. Em um twitter recente, a apresentadora Paola Carosella, e jurada do MasterChef, rebateu com um “Qual o problema disso?” a um internauta que disse que ela parecia um “traveco”. “Prazer em Conhecer” é sobre esta “homofobia estrutural”, que “luta”, desnorteada e sem rumo-crença, contra o direito mais básico e fundamental da vida: o de ser livre plenamente. O de existir sem a intromissão da sociedade. A narrativa daqui também busca a pluralidade do ver e ouvir, fundindo micro-ações e reações com narrações em off, criando assim uma experiência metafísica que usa todos os sentidos.
“Prazer em Conhecer”, com roteiro de Michel Carvalho, edição de Ítalo Rocha e fotografia de Rafael Mazza, também é um filme que se desenvolve mais pelo afeto (e liberdade incondicional do amor) e menos no “status da sorologia” da “pandemia sustentável do HIV” (que sofre a “neurose” pelo “moralismo”). Dos toques entre corpos. De mãos dadas, peitos acariciados e cabelos cafunéados. Nós também somos colocados entre estereótipos gays naturalizados. O do desejo primitivo acima de todas as coisas. De um patológico tesão incontrolável pelo sexo. Quase um vício. De se querer repetir logo experiências de prazer, como a da “pegação em Salvador com muito beijo na boca”. Este não é um documentário Talking-heads por abolir o tradicionalismo clássico da captação e buscar a informação por conversas. Que podem soar encenadas como fábulas-contos do real à moda da estética Eduardo Coutinho de ser. Ao se optar por este artifício, é possível embasar o hibridismo da ficção (que pode remeter a “Theo e Hugo’, de Olivier Ducastel e Jacques Martineau, e também a “Vil, Ma”, de Gustavo Vinagre) e inserir trechos do programa internetesco “Sem Capa”, apresentado por João Sá (que se tornou ator no filme “Vento Seco”, de Daniel Nolasco).
Por último, “Prazer em Conhecer”, que se transmuta em um filme-também (por ser inclusive e nunca limitador), realiza uma radiografia de nossa sociedade. Uma análise antropológica que pega rebarba questionadora no momento atual. Se a pandemia do Coronavírus provou que o ser humano não é tão adaptável assim (relutante em usar máscaras e se proteger) e que continua egoísta por se apegar à máxima da “A vida é curta, vou curtir como se não houvesse amanhã”, então o que dizer do PrEp e do uso de camisinhas? Como se faz para mudar mentalidades as deixando mais solidárias, humanas e preocupadas com a dignidade do viver? Este documentário, com produção de Lívia Nunes, consegue ser um importante passo para fazer verão, acordar andorinhas, deixá-las mais gays (felizes) e menos fofoqueiras com o ânus dos outros.