Praia Formosa

Jornadas contra o apagamento

Por Fabricio Duque

Durante o Festival de Cinema de Roterdã 2024

Praia Formosa

Integrante da mostra competitiva ao Tigre de Ouro do Festival de Cinema de Roterdã 2024, o longa-metragem “Praia Formosa” é uma obra sobre memórias de um passado esquecido e “aterrado”. Ao embarcar em uma viagem ao tempo com estrutura de mundos paralelos, objetiva-se reencontrar a essência de seu DNA histórico socialmente invisibilizado pelo propósito futurista do progresso. Essa narrativa de gênero, de pauta política-socialista, pela atmosfera da ficção científica, quer o resgate de um apagamento. Para os veteranos, a lembrança. Para esta nova geração contemporânea, o aprendizado. E para o público estrangeiro dos Países Baixos, uma forma de relatar consequências. Dirigido pelo realizadora brasileira Julia De Simone, formada em “Documentário Criativo” e estreante na direção de um longa-metragem, “Praia Formosa” quer desenvolver sua mise-en-scène pela estética, sensorial e etérea, especialmente quando constrói em crônica, uma atmosfera evocada de jornada sonâmbula, de que suas personagens existem entre estágios, sonhados e acordados. E que inevitavelmente remete à estrutura cinematográfica do cineasta português Pedro Costa.

Ao apresentar o filme em formato quadrado, simbolizando a de uma fotografia antiga, “Praia Formosa” busca o contraste e o conflito de períodos: o do agora, com barulhos de obras e transformações arquitetônicas, versus a imagem real (que vemos em ruínas) saturada ao barroco, parecendo a de uma pintura de uma obra-de-arte em movimento. Todo esses atravessamentos trazem a sensação de uma força invisível contra a iminência do perigo do racismo ainda vivo, latente e intolerante.  Como fantasmas que assistem a nova cidade no novo tempo. Tudo aqui é também sobre momentos, como a implosão da Perimetral, uma das “mudanças” da “ordem” natural das coisas de uma cidade grande em processo de “desenvolvimento” para a “cidade ganhar território”. Assim, “Praia Formosa” é um convite para que os ancestrais apareçam e contem o que aconteceu com suas vidas (vozes lamentos entre um fado e um canto gregoriano interestelar – em sonoridade de mantras cósmicos). É um libertário experimento político de reparação histórica, permitindo todas as manifestações religiosas, que almeja a crítica social pelo intimismo de identidade dos que sofreram (e ainda não encontraram espaços para existirem plenamente) e pela conscientização dos algozes. Será reencarnação ou possessão quando uma personagem abre os olhos?

“Praia Formosa” não é a praia paradisíaca localizada em João Pessoa, na Paraíba, mas uma memória (que apenas existe na pintura do quadro de Leonel Brayner), quase em tom de lenda urbana, do Rio de Janeiro, cujo nome batizou uma das estações Veículo Leve sobre Trilhos, o VLT, que agora é a Rodoviária Novo Rio. Olha que metáfora: um lugar de transeuntes e vida em escala! Aqui, o filme segue sem pressa para se desenvolver. Cria-se um tempo narrativo de contemplação. Ora de silêncios estendidos, ora de monólogos mais didáticos, ora de conversas de militância política. Sim, tudo aqui é conceitual e de luta social. Os relatos-confissões, de eternizar a libertação “levante”, em cartas, mostram isso de forma explícita, por seres aparentemente perdidos, vulneráveis, esquecidos no tempo, à espera de conforto e em busca de seus passados (e de suas convicções mais genuínas), como se estivessem vivendo em uma prisão-umbral. Em uma caverna, bastando apenas uma ação mais radical para abrir a porta e sair, abolindo a subserviência humanizada (e em “estágio de evolução”) com a “dona portuguesa” (que realmente acredita em seu papel inclusivo de que sua “escrava” “tem a sorte de cuidar das coisas que têm valor” – um “objeto” por anos e gerações) e adotando a defesa sobrevivente da nova Era (a expansão do conhecimento).  Dessa forma, “Praia Formosa” precisa ir além da imagem e das convenções de se fazer um filme. É preciso que se aceite a estranheza psicológica dessas “cabeças desordenadas” que “todo dia, o sol nasce de novo”. 

Sim, tudo aqui em “Praia Formosa” é uma busca pelos próximos. Pelos lugares de representatividade. Essa personagem, viajante do tempo, então, recebe um “presente”, mas também uma “maldição” quando se embrenha voluntariamente na aventura da Humanidade. Parece que estamos no universo “estrangeiro a tudo” do livro “Caim”, do escritor português José Saramago. “Praia Formosa” faz parte também de filmes de pesquisas sobre o Rio antigo, ao lado dos documentários “Praia da Saudade” e “O Desmonte do Monte”, de Sinai Sganzerla; e “Crônica da Demolição”, de Eduardo Ades. E da ficção “Todos os Mortos”, de Marco Dutra e Caetano Gotardo. Há em todos eles, um “futuro ancestral”, termo cunhado em livro por Ailton Krenak, um tempo que propositadamente confunde e que insere a dança conexão com a ancestralidade dos orixás no meio de uma estrada no Centro do Rio de Janeiro.

Nós podemos perceber também que a narrativa de “Praia Formosa”, que tem Izabél Zuaa como colaboradora no roteiro (da diretora ao lado de Aline Portugal e Mariana Luiza), soa como se estivesse dividida em três partes. Em capítulos de um épico existencial, que inclusive cita “A Escrava”, de Maria Firmina dos Reis, de 1861. Temos o barroco, o movimento e o cinema direto, que passeia no contemporâneo. Nós assim ouvimos a mensagens em relatos, quase uma psicografia, desses mortos, que querem suas histórias lembradas e nomear os espaços de tortura e escravidão, contra a “formação”, o “renascer do nada” e a limitação conservadora da sexualidade. “Praia Formosa” é muito mais que uma experiência arqueológica e de descolonização. É na verdade sobre um filme sobre recuperação do território existencialista e sobre acordar essas histórias (pela estética cinematográfica da movimento-ação livre e pelos os que têm lugar de fala) a fim de ressignifica-las. 

3 Nota do Crítico 5 1

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