Curta Paranagua 2024

Pleasure

A tirania do prazer

Por João Lanari Bo

Festival de Sundance 2021

Pleasure

O prazer é o primeiro dos bens. É a ausência de dor no corpo e de inquietação na alma (Epicuro)

Pleasure”, finalizado em 2021, é primeiro longa da realizadora Ninja Thyberg: antes, tinha filmado meia dúzia de curtas, entre eles o homônimo “Pleasure”, de 2013. Neste, rodado quando Ninja tinha 29 anos, o enredo é uma espécie de núcleo proteico do filme de 2021. Leia-se a sinopse do IMDb: Nos bastidores de uma filmagem pornô, os atores estão praticando várias posições. O boato é que uma das garotas está fazendo um duplo anal, uma rotina avançada que exige alguém extremamente durona. O curta ganhou a Semana da Crítica em Cannes, o conhecido Prêmio do Canal +, e uma versão ampliada passou, com sucesso, em Sundance. A trajetória da diretora é exemplar: frequentou escolas de cinema, e todos os filmes que fazia eram sobre questões de gênero e sexualidade. Em paralelo, cursou estudos de gênero na Universidade de Estocolmo, onde escreveu uma tese sobre pornografia online. O corpus da pesquisa eram clipes captados na internet – o que acabou despertando sua curiosidade de cineasta, ou seja, como eram pensadas e decididas as interações entre os takes. Por exemplo: quando a câmera muda para outro ângulo, qual a relação com o anterior? O que eles dizem um ao outro? E o que eles dizem antes de começar? Ou, depois? E o que significam os papéis hiper estereotipados usados à exaustão nos vídeos pornôs? Ninja resolveu problematizar essas questões, construindo à sua maneira uma semiologia do prazer, uma ciência que se dedica ao estudo da significação do prazer no seio da vida social, algo que a francesa Catherine Breillat esboçou em “Romance”, de 1999, filme-escândalo com Rocco Siffredi, uma das estrelas do cinema pornô. Passados mais de vinte anos, nesses tempos  exacerbados em que vivemos, a fagulha transgressiva da temática sexo-explícita no cinema mainstream banalizou-se, na ficção e no documentário, apesar do desconforto que pode provocar, sobretudo na audiência conservadora. Breillat, a propósito, é uma das referências assumidas da realizadora sueca.

Sim, sueca – Ninja nasceu em Gotemburgo, na Suécia, um dos países que simbolizava a liberação sexual nos anos de 1960. A revolução da internet, a partir do final do século 20, potencializou de vez a disseminação de conteúdo sexual para uma parcela considerável da humanidade, sugerindo uma liberação desenfreada que pode estimular condutas e práticas sem controle, no limite criminosas. Esta é uma difícil e complexa discussão, que “Pleasure” não hesita em atacar. Uma jovem e atraente garota emigra da Suécia para Los Angeles, disposta a tornar-se uma porn star, mesmo que para isso tenha de encarar os papéis mais hard na hierarquia das produções pornográficas – cujos premissas, como sabemos, são elásticas e associadas a um voyerismo fetichista e neurótico. Bella Cherry (nome de guerra que adotou) experimenta ao mesmo tempo seus limites físicos e emocionais: a atriz, Sofia Kappel, foi descoberta após um longo casting, nunca tinha tido qualquer experiência de representação. Provavelmente ela era a única pessoa no set de filmagem sem conexão com o mundo do “cinema adulto”, esse eufemismo que a indústria do audiovisual inventou para delimitar a produção pornô. Os ambientes que Bella trafega exalam um ar de estranha naturalidade, da pizza que divide com as colegas que batalham no ramo, ao sexo que executa com parceiros “profissionais” – tudo é simulado, não há penetração explícita no filme. As cenas adquirem um elevado grau de verossimilhança graças à atuação de Sofia, mas também graças ao incrível trabalho de pesquisa e assimilação dos códigos desse setor da sociedade do espetáculo que a diretora, Ninja Thyberg, logrou. Uma simulação de estupro, Bella com dois parceiros performáticos dispostos a tudo, bate na fronteira da representação: além disso, só resta o choro compulsivo.

Com toda a vertigem digital à nossa volta, é como se o universo da internet simulasse também um traço comportamental: ela, a internet, expõe o melhor e o pior da natureza humana. “Pleasure” toca nessa brecha sensível: os sites pornográficos representam mais de 30% de todos os dados transferidos no ciberespaço. Destes, 88% contem violência contra mulheres. Esses sites se transformaram num centro de excelência em data analytics, possivelmente mais eficientes do que Google ou Facebook. Nunca as reações e impressões do público consumidor, de todas as classes sociais, foram tão minuciosa e milimetricamente escrutinadas, a cada átimo de tempo: a tirania do prazer.

4 Nota do Crítico 5 1

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