Pingo D’Água
Pioneiro de Araque
Por Vitor Velloso
A primeira impressão de “Pingo D’Água” é que a prática recorrente de recorte temporal, que visa essa construção ensaísta, vai ser construída ao longo de sua projeção. O que ocorre em parte, sendo eficiente em alguns momentos, seja em concretizar uma anedota cômica ou viabilizar uma desconstrução imagética etc.
Dirigido por Taciano Valério, o filme parte de um objeto absolutamente subjetivo, visando uma amarra mais ampla, que abrange questões históricas e culturais do Brasil. De forma consciente, utiliza a figura de Jean-Claude Bernardet como eixo dessa proposição estética, mas que parece procurar seu drama em todas as cenas. É capaz de criar alguns núcleos narrativos interessantes, mas acaba falhando em tentar viabilizar tudo em torno de uma unidade própria.
Acompanhar as ironias acerca da metaforma que o longa apresenta, a partir de um grupo de atores por exemplo, pode ser um desafio mais complicado que o imaginado inicialmente. Isso porque o filme parece estar tão preocupado em trabalhar sua iconoclastia e irreverência, a partir da figura de Bernardet, que parece esquecer de uma estrutura que rege aquela viagem lisérgica toda. Os pulos temporais e espaciais presentes em “Pingo D’Água” são de uma natureza ímpar, que só pode ser compreendida através de seu início que recorre à exposição, mais que necessária aqui, para que haja alguma base para tudo que virá a seguir.
Essa tentativa de irreverência através da matéria, memória ou propriamente do imaterial, gera uma consequência imediata ao projeto, sua compreensão não é evolutiva, muito menos lógica. E isso pode afastar o espectador instantaneamente, pois os passos dados vão perdendo a forma. Enquanto se mantinha brincando com a figura de seu protagonista, que diz não conseguir acompanhar as críticas de cinema pois a tecnologia o repele, o projeto era engraçadinho, contava com esse breve engajamento de um nicho. Conforme ele se transforma nessa plurais faces cinematográficas, se torna um imbróglio dramático. Que apenas não é mais grave, graças à fotografia do projeto, que é capaz de conceber planos que concentram toda uma força gravitacional daquela metalinguagem morfológica endêmica, em pilares bem estruturados na imagem. Sendo pontual de forma momentânea, consegue às vezes gerar uma unidade sólida para tudo aquilo.
De forma situacional, consegue funcionar como um desenho que realmente tenta definir aquilo que corrobora com uma descaracterização do cinema nacional, frente às mudanças contemporâneas, que surgem em um primeiro momento de maneira pragmática, através da ação, dos meios, formas de consumo e deságua em uma polarização radical de tendências estéticas e políticas da produção nacional. Essa trajetória, talvez encarnada na própria figura de Bernardet, é parte de um movimento tardio de necessidade de aproximação de frentes diferentes da luta nacional pelo direito do cinema. E a referência, tardia, deve-se àquilo que Jairo tentou realizar com o Cinema Marginal, onde era contundente em seu brio em todas as frentes possíveis.
Bernardet tenta essa multifacetada figura do homem cinematográfico, colaborando com estas produções marginalizadas daquilo que se desenha como um “protótipo de exportação cinematográfica” ou indústria. A atitude altruísta ou egocêntrica, não cabe a mim julgar, pouco é efetiva em sua totalidade, pois se essa figura de um martírio perene, da cultura, de uma História ou de um cinema, se centralizar na silhueta de Bernardet, o cinema brasileiro enfrenta então o problema de se (re)definir enquanto postura de si mesmo.
As intenções de Taciano são peculiares, ímpares, mas possuem uma fibra acerca desse incômodo diante da realidade, que é transmitido de forma direta na forma do longa, que possui uma tensão constante durante todo o período de projeção. E esse esforço do diretor é visível em seus outros projetos. “Pingo D’Água” deve ser reconhecido que, assim como Cristiano Burlan, Valério busca uma produção que seja independente a partir da própria concepção da palavra e deve ser reconhecido por esse esforço. Está certo que ainda há um caminho a ser traçado, mas sem dúvida o brio ele possui.
Essa falta de vigor pelo objeto cinematográfico e pelo Brasil, é a maior constante que vemos crescer dentro da cinematografia contemporânea, que parece estar preocupada com o jogo de imagens, com a compra de ideias, com o contrabando ideológico, com a apresentação pra gringo, com a facilidade do discurso pro europeu entender etc. Abominar essa atitude de venda cultural, é acreditar que os tempos se aproximam em farsa e devem ser combatidos através da lente.