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Pieces of a woman

A reconquista do eu

Por Victor Faverin

Netflix

Pieces of a woman

O fruto proibido que originou a expulsão de Adão e Eva do paraíso já caiu na cabeça de Isaac Newton, envenenou a Branca de Neve e, hoje, está presente como logomarca em smartphones e computadores a preços estratosféricos. A maçã faz parte do imaginário popular mais pelo simbolismo embutido nela do que pelo sabor. Seu formato representa o mundo e as sementes, a fertilidade. Assim, nada mais alegórico do que a presença da fruta em vários momentos de um filme que trata do luto pela perda de um filho. “Pieces of a woman” (2020), longa-metragem dirigido pelo húngaro Kornél Mundruczó (“Lua de Júpiter”, 2017; “Deus branco”, 2014) foi premiado no Festival de Veneza e tem o potencial de ser indicado em algumas categorias do Oscar deste ano, sendo a mais provável a de melhor atriz para Vanessa Kirby (Martha), cuja interpretação visceral, crua e mordaz é grande parte das engrenagens que fazem o filme funcionar.

Logo de início, a obra da plataforma de streaming Netflix já nos presenteia com um longo plano sequência arrebatador, convidando o espectador a fazer parte da cena, como um indivíduo que observa o que está acontecendo e rói as unhas, arranca os cabelos e bate a cabeça na parede pela impotência sentida a cada cômodo em que a câmera adentra. Tudo isso é complementado pela trilha sonora aflitiva e sufocante do momento em tela. Não é difícil imaginar filetes de suor escorrendo pela testa de Mundruczó enquanto manipula a lente sorrateira, pulsando a cada grito de Martha em um trabalho de parto doméstico em que o resultado é carregado de previsibilidades imprevisíveis, afagos de maus-tratos e calmos desesperos. Uma torrente de contrariedades que pulsa freneticamente em olhos incapazes de dar mais de duas piscadas por minuto. É cinema bem feito.

Tudo isso é possível pelo uso eficiente de um componente que já rendeu grandes histórias na Sétima Arte: o luto. “Pieces of a woman” usa esse sentimento universal para refletir sobre diversas coisas, como a fragilidade de um matrimônio e a incapacidade que a sociedade tem em lidar com a dor do outro. Neste ponto, somos todos imberbes sem qualquer traquejo, mecanizados pelo desconforto de sermos obrigados a observar o sofrimento instalado em alguém, mesmo que já tenhamos sentido essa mesma violência no âmago. O corpo de quem você amava está se decompondo e não há nada que se possa fazer a respeito. Como resultado, a protagonista mantém-se quase sempre anestesiada, incapaz ou sem interesse de juntar as peças que deixou pelo caminho a partir do momento em que perdeu seu bebê. O diretor encaixa a trilha sonora – que também é digna de indicação à estatueta dourada – em momentos cirúrgicos onde vemos saltar aos olhos a estagnação e, às vezes, um lampejo de retomada.

Recomeço esse que já se torna difícil de enxergar em Sean, o marido (Shia LaBeouf), estagnado em suas próprias limitações e que usa uma recaída alcóolica na tentativa de se colocar em pé, antagonizado pela sogra (Ellen Burstyn), altiva e construtora da própria história e que brinda o telespectador com um poderoso monólogo que faz arrepiar os pelos do braço e da nuca. O filme seria, certamente, sufocante e quase inassistível se seguisse por todo o tempo no ritmo frenético de seus primeiros 30 minutos e do arrebatador plano-sequência. Por isso, dosa com momentos contemplativos, como na passagem de tempo com a construção da ponte em que Sean trabalha, cada vez mais completa e prestes a se conectar, filmada em grande plano aberto.

Tamanha verdade de “Pieces of a woman” se deve ao roteiro de Kata Wéber, escrito com base em uma experiência pessoal e traumática com seu parceiro, o próprio diretor do longa. Daí, só poderia mesmo resultar em autenticidade pura, brutalmente exposta pela atuação poderosa da protagonista, em sintonia com a real essência da história: a reconquista do próprio eu após o trauma. Nesse processo, o público pode se sentir mais torcedor do que espectador. Mundruczó faz questão de usar planos-sequências mesmo em momentos triviais, dando a impressão de estar mais impressionado com a força de sua atriz do que em ser um vigilante cuidadoso.

“Pieces of a woman” destila técnica e intensidade em uma jornada que funde o realismo com a alegoria, o germinar de uma semente de maçã como analogia a um recomeço e à realização de um sonho que o destino não tem mais o direito de interromper.

5 Nota do Crítico 5 1

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