Paterno
Masculinidades insólidas
Por Ciro Araujo
Durante o Olhar de Cinema 2022
A partir de uma cena fechada dentro de um carro, um homem emerge na tela. Acompanhamos ele até que se encontra com outro, mais jovem. É a primeira vez que saímos de sua cola. Os dois seguem até uma casa de um homem negro, que apresenta sua casa, com intuito de aumentar um suposto interesse de compra. A conversa vai, conversa vem, e os interesses reais se revelam: algum empreendimento imobiliário. Através de cortinas e fachadas baseadas muito em valores masculinizados, “Paterno”, segundo longa-metragem de Marcelo Lordello, que previamente dirigiu em 2014 “Eles Voltam”.
Toda a descrição necessária para a introdução do filme se dá pela ótima execução que o cineasta brasiliense mas radicalizado em Recife. Pode-se dizer que é provavelmente mais um fruto dessa ótima “safra” de diretores pernambucanos. A obra a todo momento se desafia a trabalhar de acordo com a visão hierárquica em uma família de classe alta nordestina – que, contudo, é bem identitária de um Brasil por inteiro. “Peço que vocês tenham paciência com o filme, que ele é meio áspero”, menciona Marcelo logo antes de apresentar o longa-metragem presencialmente. De fato, o protagonista Sérgio, interpretado por Marco Ricca, está em uma balança de morais. O que determina ser um bom pai? Como não ser um capacho e sair da sola do pai? As frustrações inerentes graças à estrutura natural de uma família de tamanha riqueza, como não poder tocar projetos pessoais, ter um casamento sólido ou inclusive ouvir certas músicas. O que é forte aqui é toda a relação de Marco com seu próprio personagem, as ações e reações sutis que ele suga. Para completar, a câmera tão fechada perto dele, o invadindo e revelando sua fragilidade.
De fato, “Paterno” é um exemplo da clássica cinematografia brasileira sobre classe média alta ou alta que analisa angústias sobre essa relação. Provavelmente é assim que o filme possui sua maior pedra no caminho para se encontrar em qualidades, mas quando tal é afastado – e é possível –, encontra-se em cena um homem que não compreende sua masculinidade e o quanto ela é ameaçada por medos. Sérgio sabe imediatamente que sua família não é perfeita, pelo contrário. Entende os podres, entende como isso afetou sua vida e fala, em alto e bom som. Apesar disso, enfim, a estabilidade. O longa-metragem de Marcelo Lordello não é moralista, e nem deveria, porém também não encontra exatamente um desfecho. A bolha em que ele se encontra tem limite e é até lá que o protagonista pode caminhar, como se não quisesse atravessar ela. “Áspero”, disse o cineasta. Essa palavra ecoa na cabeça, procurando-a compreender exatamente como tal característica distribui no personagem. Complexado, suas emoções corrosivas explodem na tela, tornando-o basicamente a estrela.
É ainda inegável que essa teimosia encontrada na obra torne-a difícil de ir além, de atravessar para mais. Questões racistas são cômicas, apesar de não possuírem esse intuito. Não são muito efetivas, mas trabalham para caracterizar o ambiente de Sérgio. A transparência, finalmente lidada em uma cena, possui o poder de deixar tão óbvio como essa estratificação social funciona. Personagens negros sempre são rebaixados, por claros motivos. Rejane Faria explode emotivamente quando é permitida, nos finalmente das quase duas horas de filme. Essa é a exceção. Assim como o filho de Sérgio, que é muito mais um dispositivo para representar as relações hierárquicas mantidas pela família Bittencourt. O espelho investido para o protagonista se enxergar através de sua própria sucessão é um arquétipo tão clássico que familiariza a expectativa.
Apesar do ultra-realismo promovido pela direção, seja pelas reações, atuações ou inclusive uso de palavras. A quebra rítmica promovida sob imagens irreais ou fictícias funcionam em uma cadência tão interessante. Em um determinado momento, uma cena de funeral: a cúpula da empreiteira da família se encontra, todos de ternos, e conversam sobre os próximos movimentos sobre os negócios. Por fim, se desculpam por realizar a reunião em meio ao tal funeral. A cena mafiosa atravessa comicidade e interpela pelo realismo proposto inicialmente. Ou cenas de investigação e perseguição, totalmente fora de cabimento do que Marcelo Lordello nos apresenta. Essa catarse é benéfica para o filme que contém, ao menos narrativamente, uma gramática já tradicionalista no cânone brasileiro. É como se existisse precisão depois da repetição em “Paterno”.