Curta Paranagua 2024

Pajeú

Não mate o curandeiro!

Por Fabricio Duque

Pajeú

Em seu primeiro longa-metragem solo, “Pajeú”, o realizador Pedro Diógenes, que, participante do Coletivo Alumbramento, co-dirigiu “Os Monstros”, “Estrada para Ythaca”, e “Inferninho”, busca abordar neste  o apagamento da História, em prol de um progresso desenvolvimentista, pelo caso do Riacho Pajeú, que corre integralmente na cidade de Fortaleza, no estado do Ceará, no Brasil. E também entender qual é o papel do ser humano, enquanto individuo social, cujo povo cada vez se comporta mais como “espectador impassível” e se esquece do seres “presos na escuridão do canal”.

“Pajeú” apresenta-se como uma antropológica experiência coloquial, quase antropofágica mesmo pela confronto contraditório de se auto-alimentar do próprio egoísmo regurgitado, este que encontra descontrole melancólico-resignado nas interpretações, de atores e entrevistados. Sua protagonista Maristela(a atriz Fátima Muniz) é obrigada a atravessar (patologicamente, como se sofresse a dor dos soterrados) o passado quando recebe a estranheza (quebra do tempo e o espaço, Imaginação-sonho e realidade), quase de transe possuído, de ter que reacender, como uma urgência, a própria ancestralidade do lugar em que vive.

Com montagem de Guto Parente e Victor Costa Lopes, a narrativa de “Pajeú”, termo de origem tupi para significar “rio do curandeiro” acontece pela processo investigativo de procurar pistas (por uma civil e professora), inserindo entrevistas documentais como conversas ficcionais (que fornecem informações didáticas para a pesquisa), ao som de uma trilha-sonora (de Vitor C.) que instiga a catarse do acordar, a alienação em revolta e o realismo fantástico, principalmente pela melodia industrial de ruídos maquinários com sons metafóricos de sirenes de carros de polícia, e especialmente pela conexão da performance de Inquieta.

O filme, exibido no FID – Festival de Marseille 2020, conduz o público pelo tom de perigo iminente, que vem de dentro. Há uma naturalização sensorial e metafísica do etéreo e uma ambientação que nos remete aos filmes “Pendular”, de Julia Murat, “Um Animal Amarelo”, de Felipe Bragança, “Mormaço”, de Marina Meliande, e “A Morte de J.P. Cuenca”, de João Paulo Cuenca. Tudo porque “Pajeú” quer, sem interferir, apenas sendo observacional e escutador, estimular a crítica ao sistema brasileiro, tanto de descaso com as questões sociais, quanto de precisar cimentar o antigo, porque o novo pode existir sem memória.

Aqui, a fotografia orgânica e mais direta busca a  verdade íntima do que se assiste. A “vida real”, que se comporta como o oposto da personagem principal, que cria ao espectador a percepção de que outro filme de inserção distante começou. Como o bar e a conversa. Como a música do Karaokê (que se infere a “Inferninho”, muito talvez por causa do mesmo ator, Yuri Yamamoto) impede o ouvir e faz com que o falante diga palavras ao vento. Um monólogo terapêutico que só serve para o interlocutor. “Se eu calar, a tristeza começa”, canta-se.

Mas toda essa liberdade mise-en-scène pode desvirtuar demais e se perder no contexto, pela gestação das elipses temporais, sem cadência e equilíbrio. Sim, é livre demais, ainda que com a versão tupiniquim de A-Ha e “Take on Me”. Mas quando um personagem some como um espectro fantasmagórico, desaparecendo fisicamente, nós somos despertados que tudo ainda pode estar sendo um sonho ou loucura acordada. Um transe compartilhado. Um mundo paralelo que se abre por um portal em que tudo é possível.

Em “Pajeú”, a cidade é a real protagonista quando não só participa e interfere, mas por reproduzir a própria essência existencialista da terra natal. “Foi muito difícil encontrar os documentos sobre o riacho Pajeú”, diz-se. Nós aumentamos nossos  questionamentos dos porquês desse “desaparecimento” (“fragmentos e cacos”) não conservar nenhum “resto de memória”, sem possibilidades de “reconstituição”. Essa busca é uma “solução” ou um “problema maior”, visto que quando chove o riacho enche e transborda nas casas construídas. “Uma desassistência do poder público para validar os planos desta área tão valorizada”. Assim, não só se desaparece rios e documentos, mas também pessoas. “Reconstituindo ele (o riacho), talvez a gente se reconstitui também”, diz-se.

“Pajeú” é um filme que tenta encontrar as peças do quebra-cabeça para entender a essência-origem. Contudo, a dificuldade de respostas pode gerar  nas personagens, desistência ou loucura ou a própria morte. O terceiro ato, um outro filme é ofertado. Pessoas são entrevistadas na praia sobre o Riacho. Ninguém nunca ouviu falar. Eles não se interessam. Tudo porque já passou. O lema agora é de diversão. “Nós não temos importância para ninguém. Lembrar do que viveu também é legal. Precisamos esquecer de algumas coisas e pessoas para viver melhor. Será que vai cair algum órgão seu se você jogar o lixo na lixeira?”, algumas reações conseguem sim referenciar a pandemia que passamos no atual momento. Enquanto essa crítica é escrita, quase mil mortos por dia “ganham” valas. E a população em “festa” lota as praias e os bares. Assim, ser politizado-consciente faz a parte como ser humano. E isso nossa protagonista recebeu. Um presente e/ou uma maldição. Nunca saberemos no momento. Mas a “a força dos ancestrais está nos guiando”. “A vida é um teatro. Todo mundo mente”, diz-se. Concluindo, a mensagem maior do filme é a de que quando se mata o curandeiro, não há mais esperança e futuro para viver.


O filme integra a Mostra Novos Olhares do Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba 2020.

3 Nota do Crítico 5 1

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