Os Sapos
O conforto da não mudança
Por Fabricio Duque
Mostra CineMina 2024
Exibido na Mostra CineMina, que aconteceu ano passado no Estação Net Botafogo, no Rio de Janeiro, “Os Sapos”, novo longa-metragem solo de Clara Linhart, é uma crônica-lente-de-aumento sobre as questões internas de relacionamentos afetivo-sociais. E do que está entre quatro paredes. E das consequências (e “bagunças” decorrentes) de quando uma pessoa-visitante “intrusa” chega a essa dinâmica já estruturada e tão confortável para quem a vive. Talvez, no caso deste filme, as máximas expositivas (por análises coloquiais de uma necropsia do subconsciente) de Nelson Rodrigues consigam uma melhor tradução psicanalítica-comportamental que os estudos de Freud. Talvez porque o dramaturgo adentre de maneira mais afiada nas intimidades dessas vidas privadas, em contraponto com as do austríaco que busca uma acepção mais padronizada ao coletivo.
“Os Sapos” quer acontecer pela observação. Essas personagens são as cobaias dos espectadores para um bem maior: o de expor todos os problemas estruturais envolvidos e intrinsecamente característicos das relações interpessoais, especialmente as que se constroem na dependência emocional. Mas o filme é muito mais do que isso, muito mais que sobre o machismo, sobre a dominação do homem que enxerga a mulher como um “móvel” da casa, sobre a felicidade tóxica (que se anula para manter a ordem e a “covardia” da paz), sim, tudo aqui é muito mais que esse amar incondicional, particular, subjetivo, de jeito próprio e único. Sim, “Os Sapos” é quase um retrato antropológico da condição humana enquanto seres vulneráveis que abrem mão de suas individualidades para vivenciar plenamente as alegrias desmedidas com o outro.
Este é um filme sobre a mais intensa e universal forma de sentir a paixão, que desenvolve sua trama pela perspectiva dos olhos dessa passante-“forasteira” convidada “por engano”. E como tudo isso pode afetar e gerar gatilhos existenciais adormecidos. Inspirado no curta homônimo de 2011, que foi baseado na peça de teatro de mesmo nome, escrita por Renata Mizrahi (em cima de histórias reais – que aqui também assina este roteiro), a tragicomédia “Os Sapos” imprime uma narrativa de intimidade revelada, numa atmosfera de construção entre a projeção real do acreditar e a realidade paradoxal, em referências explícitas (e ditas pela própria diretora) a “Shiva Baby” (2020), dirigido pela canadense Emma Seligman. Há nesta obra um realismo coloquial, mas com a sensação de vida editada, de teatro naturalista. Por trás dessa câmera convencional, em ângulos estáticos, podemos imergir e aprofundar discussões em processo de terapia, de catarse, de mudança, de redenção e/ou até mesmo de retrocesso ao conforto.
É, a complexidade do ser humano não se consegue resolver com a padronização literal da razão dos tempos atuais. É, como podemos mensurar e explicar o amor e o desejo pelo outro? Cada um tem suas predileções, preferências, idiossincrasias, permissões, fetiches, limites e gostos variados. São os detalhes que definem os porquês dessa vontade que temos em querer o outro, “alguém para chamar de seu”, entre chamamentos íntimos à la “Sargento”, que por sua vez ainda desdobra mais questões, como a da comparação à hierarquia “militar”.
Talvez, o livro “O Homem Sem Rosto”, de Rose Panet, pode ajudar a dar uma melhor explicação sobre como esses casais se tornam uma “coisa” após tantos anos juntos. Com a teoria da consubstancialidade (pelos antropólogos americanistas), que é “a troca de substâncias entre duas pessoas entre um casal, que após uma vida compartilhada em comunhão, se tornam uma só com os mesmos fluídos corporais e sangue alterado por toda essa troca de saliva, suor e sêmen), “Os Sapos” assim ganha ainda mais potência material, visto que nós de fora, apenas com nossos olhares, não conseguimos mesmo entender os pormenores idiossincráticos.
Este é também um filme de interpretações, de esquetes encenadas, de fragmentos-instantes. O trio de atores Thalita Carauta (que mostra sua maestria também no drama), Karina Ramil (assim como a atriz do Porta dos Fundos que – ainda que traga “cacos” do canal de comédia – campeia uma naturalidade bem coloquial), e Pierre Santos traz cada um uma linha de condução. “Os Sapos” é um filme de situações, de humor constrangedor, entre a ingenuidade do acreditar e o medo de ser confrontado pela verdade, que destruíra o estágio do presente. Então, esses seres humanos, seguindo a “normalidade” de suas características genuínas, participantes e grudadas a suas personalidades, preferem o conforto ao término, porque esse primeiro não dá trabalho (é o famoso jogar a poeira embaixo do tapete) e o segundo faz com que a pessoa precise reiniciar o processo de conhecer outro alguém.
“Os Sapos” é assim: articulado, despretensioso e espirituoso. Um filme que viaja para fortalecer as relações, que se assusta com esses bichinhos anfíbios, que tenta dar um novo começo, que recai no mesmo erro, que atiça a redenção e liberdade, mas acaba se consolando na “toxicidade” do antes. E criando a metáfora dos sapos e os humanos, que habitam ambientes úmidos e sombreados, que ressecam com a exposição dos raios solares e que são ativos apenas na noite.