Os Colonos
A decisão da espera
Por Fabricio Duque
Festival de Cannes 2023
Querendo ou não, inevitavelmente, o cinema chileno é pautado pelo elemento-tom político-social e pela tentativa de retratar a História para buscar respostas, causas e propósitos, num estudo quase antropológico de indivíduos confrontados pela coletividade. E assim, não poderia ser diferente com o longa-metragem “Os Colonos”, exibido na mostra Un Certain Regard do Festival do Cannes 2023, cuja narrativa se desenvolve pela atmosfera superficial das ações e interpretações de seus atores para construir todo o conceito metafórico contextual de real significado de uma Nação nas cenas finais. É inevitável também não compararmos “Os Colonos” a “Assassinos da Lua das Flores”. Se no filme de Martin Scorsese, a trama acontece pela câmera simétrica e racional do olhar dos nativos americanos, aqui, no filme dirigido pelo chileno Felipe Gálvez Haberle, a história é contada pela coloquial e perspicaz poesia política nos olhos de um local no meio de todo início da colonização do Chile, na Terra do Fogo, em 1901.
“Os Colonos” é ousado (talvez muito mais ingênuo que pretensioso) quando decide criar a espera. Quando retarda seu objetivo. Nesse tempo do antes, nós espectadores somos convidados a embarcar em uma jornada épica num faroeste atípico com ares narrativos de Quentin Tarantino (por conta de seus conflitos sonoros – interferências de uma época mais moderna em um passado recriado) e com um que mais implícito de Jean-Luc Godard (pela mudança de cores nos créditos de abertura). Essa narrativa busca também o constraste da mise-en-scène, confusa entre a contemplação didática da imagem e o tom afoito da montagem, numa naturalidade editada. Essa hesitação em optar por um caminho acaba por impedir a imersão à obra. Vamos entender! Aqui, a câmera observa as ovelhas, o trabalho no campo; já seus atores precisam “correr atrás” e se aproximar das lentes para serem percebidos. Tudo parece ser traduzido pela superficialidade e pela captação líquida-passageira, de forma distante. É como se público fosse proibido de acessar camadas existenciais mais profundas, até mesmo a sensação de perigos iminentes. “Os Colonos” é dividido por capítulos. Cada um traz um núcleo e uma perspectiva, ainda que seja atravessada pelos outros, por novas andanças e por novos lugares.
Dessa forma, o longa-metragem comporta-se como uma novela de “crônicas sensacionalistas”, que potencializam preconceitos, pensamentos e estereótipos comportamentais (o ego dos homens “dominantes-machos-alfa” e suas competições para provação da masculinidade – talvez explicado por causa dos “militares entediados”), de “meio índio, meio branco”. Busca-se chocar com expressões ofensivas da atualidade politicamente incorretas e passíveis de prisões. Então, para que esse querer mais sensacionalista venha à tona é preciso se utilizar de uma estrutura narrativa já consolidada e palatável. E “disciplinada” ao entendimento da massa (“Eu e Deus temos entendimento”). Mais teatral, mais encenado, menos naturalista, com suas reações (e frases) de efeito, com seus diálogos mais populares, com seu balé de expressões e seus olhos sincronizados (só falta a câmera lenta), tudo aqui deve ser mais suspenso da realidade (inclusive por conta um ser folclórico, com um que de extraterrestre, que aparece do nada na mata – sim, a maioria das “reviravoltas” do filme aparecem do nada – queria alucinação?), gerando uma ambiência incompatível. Sim, o diretor, que editou o filme “O Grande Movimento” parece memo querer tudo: “a estética, a observação”. “Mas que estética?”, uma das personagens pergunta a outra.
Há realmente em “Os Colonos” a ideia de que o filme está “inventando a pólvora”. De que está revolucionando a estética do cinema. Contudo, esta obra consegue jogar algumas questões de ética-filosófica-política-social. Uma delas que estimula nossa humanidade religiosa é o porquê desse “mestiço-chileno” não matar seus colonizadores quando teve a chance. Qual o motivo? Ele poderia ter ajudado a salvar a própria História. Certo? Pois é, o cinema chileno é assim. Vai de grão em grão, bem lento e sutil, com seus questionamentos ideológicos. Em outro momento, um colonizador pergunta a uma mulher “índia” se ela “quer fazer parte da Nação”. Em outra cena, o discurso-confissão de uma mulher rica sobre os “fins justificarem os meios”. E/ou quando o soldado, imbuído de catarse e “testosterona”, sugere ambivalência de sua sexualidade (e o medo de assumí-la, gerando violência contra a mulher e o “refúgio” de tomar banho pelado com os “brothers”) no “fim das terras”, “seguindo seus desejos” porque “as coisas são mais relaxadas”, às vezes à moda de “O Segredo de Brokeback Mountain”. Ah, é outra referência que não passa batida é com “Game of Thrones” e toda essa busca desenfreada e irracional por poder e seus impulsos-diversão (e jogos) para matar.
“Os Colonos” é sobre ressignificar preconceitos pela diplomacia. Mascarar ofensas com a soberania da pátria. “A lã manchada de sangue perde o valor”, “ensina-se” no meio de um “balé musical”. Sim, a obra ganha mais e mais camadas: “forma”, “estética”, entre o “frágil e o complexo” e questões-tabu. “A morte de índios faz o capital e o desenvolvimento da Terra”. Isso nos remete à citação que “Os Colonos” faz em seus créditos iniciais ao escritor inglês (não “escocês” – esta referência está no próprio filme) Thomas More, no livro “Utopia”, em 1516, sobre uma república imaginária governada pela razão e tem como objetivo contrastar com a realidade cheia de conflitos da política europeia da época. Assim, “Os Colonos” pode ser percebido como uma ilha imaginária, de seres “mimados” e perdidos. Que não sabem inclusive como se sentir. São paradoxais, visto que almejam a liberdade, mas escolhem as prisões sociais. Brigam por territórios contra indígenas, mas não tem a menor noção do querem construir. O filme, representante escolhido pelo Chile ao Oscar 2024 e vencedor do Prêmio Fipresci, leva sim o espectador a alguns pontos bem interessantes, mas espera demais para tomar a iniciativa e começar realmente seu on the horse hills road.