Oh, Canadá
Desarranjo memorial
Por Vitor Velloso
Festival de Cannes 2024
Paul Schrader, roteirista de filmes como “Taxi Driver “(1976), “Touro Indomável” (1980), “A Última Tentação de Cristo” (1988) e diretor de “Mishima: Uma Vida em Quatro Tempos” (1985) e “Hardcore – No Submundo do Sexo” (1979), para citar alguns exemplos, vinha reconquistando o público com seus filmes recentes, em especial com o interessante “First Reformed” (2017). Contudo, seu novo filme, “Oh, Canadá”, exibido na mostra competitiva oficial a Palma de Ouro do Festival de Cannes 2024, é um esforço desajustado de trabalhar as representações da memória através de suas lacunas, desarranjos e confusões, tornando a experiência algo não apenas parcialmente confuso, como majoritariamente desinteressante.
O filme trabalha com uma sessão de entrevista e exposições de flashbacks, entre o presente e esse passado contado, com idas e vindas, afirmações e questionamentos. As sequências no presente funcionam melhor, com Leonard Fife (Richard Gere) se despindo e contando segredos de sua história, com detalhes e descrições até então desconhecidos. Funciona parcialmente bem por encontrar pequenos recursos formais para trabalhar a dinâmica de isolamento e múltiplas “telas” (por vezes, de forma literal), que unem esses personagens em um jogo de isolamento ambíguo, provocando uma dialética de espaços. Fife exige a presença de sua esposa, Emma (Uma Thurman), que ocupa duas posições distintas durante todo o projeto; em uma delas, seu rosto também é isolado em uma tela. Fife está no centro do registro e é representado em dupla condição de vulnerabilidade: física (por sua condição de saúde) e formal (por ser confrontado diretamente com o aparelho cinematográfico e com perguntas sobre o passado). Porém, se essa lógica de um embate direto poderia funcionar para a reflexão sobre os dispositivos e a própria condição da história — entrecortada frequentemente, recontada e questionada —, a lógica de “Oh, Canadá” também ambiciona um conflito geracional e de autopercepção diante do tempo, da moral e da ética, quando Sloan (Penelope Mitchell) passa a ser cada vez mais incisiva em suas perguntas, atropelando a própria ordem de hierarquia no set e fazendo Fife refletir sobre sua condição, sobre a forma como é visto etc.
O problema é que, além de essa dinâmica ser insuficiente para sustentar a obra — com alguns diálogos fragmentados e atuações frágeis, inclusive do próprio Richard Gere —, quando o filme opta pelos flashbacks para desconstruir essa memória, em movimento contrário à lógica de representação de uma história padrão, o projeto descamba de vez. O jovem Fife, interpretado por Jacob Elordi, não é apenas um personagem insuportável, mergulhado em uma história arrastada e desinteressante, mas sofre com a atuação do jovem ator, que mantém uma falta de expressividade ao longo de todas as cenas, piorando aquilo que já se desenhava de forma desagradável. O espectador se vê implorando pelo fim das sequências de flashback, com a constante mudança entre as cenas atuadas por Gere e Elordi criando momentos embaraçosos.
Em “Oh, Canadá”, a ambição de Schrader não acompanha sua estrutura e desenho formal; pelo contrário, o diretor parece tão perdido quanto o protagonista, indo e voltando na linguagem, como quem procura um objeto central para se apegar e desenvolver o drama. Não por acaso, os pequenos brilhos do projeto estão na fotografia assinada por Andrew Wonder, que é capaz de transitar entre diferentes propostas estéticas, de acordo com o posicionamento dramático do personagem, dependendo de sua forma de narrar aquele momento. Se essa maleabilidade cinematográfica sustentasse o projeto, o novo filme de Schrader seria, ao menos, regular ou seria capaz de manter a atenção do espectador por grande parte do tempo de projeção. Não é isso que acontece. O ritmo modorrento faz “Oh, Canadá” se arrastar por cantos da memória que pouco se relacionam com a grande dramaticidade exposta durante as entrevistas, pouco agregam a um personagem que vai se tornando cada vez mais desinteressante com o passar do tempo e que procura provocar um mínimo de discussão filosófica sobre o ato de filmar/registrar momentos históricos, recorrendo a momentos constrangedores, como Fife falando de Sontag de forma arbitrária, apenas para sustentar um argumento dramático de que a imortalidade do registro é consumada sempre que alguém tem contato com ele. É tudo muito frágil. Chega a parecer um projeto egóico de um cineasta que já flertou com Bresson e que agora despenca em uma ambição que não parece ter um fim claro.
No fim das contas, Schrader segue sendo um cineasta que vamos acompanhar de perto, mas qualquer ansiedade pelo seu próximo projeto está momentaneamente abalada.