Occupied City
Espaço e Tempo
Por João Lanari Bo
Festival de Cannes 2023
“Occupied City”, documentário do artista e cineasta Steve McQueen, é daqueles projetos que propõe ao espectador um desafio concreto: são quase 4 horas e meia de duração, em uma narrativa (a palavra é insuficiente) que não avança nem recua, não sai do lugar mas está o tempo todo em movimento. Tempo: categoria a um tempo (de novo) filosófica e material, histórica e física. Baseado no livro “Atlas of an Occupied City, Amsterdam 1940-1945”, da cineasta e historiadora Bianca Stigter (companheira do realizador), o filme recupera a vida cotidiana em Amsterdã sob o domínio nazista, desde a invasão em 1940 até a libertação, em 1945 – e o faz revisitando centenas de endereços no presente do século 21, referindo-se ao passado com verbetes secos e objetivos das tragédias que, por alguma razão, remetem àqueles espaços.
As imagens contemporâneas – capturadas em 35 mm, formato 4:3, proporção clássica do cinema – configuram uma estética próxima dos documentários urbanos dos anos 30, poéticos e atentos aos detalhes da diversidade da presença humana. Os endereços trazem memórias da repressão brutal e deportação de populações judaicas para os campos de concentração: mas também evocam ações corajosas da resistência local, judeus e não-judeus, assim como traições dos que não hesitavam em sacrificar pessoas próximas na luta pela sobrevivência. Havia o poder opressivo dos alemães ocupantes, e havia também os colaboracionistas – que chegaram a constituir um partido nazista holandês, o NSB. Em fins de 1944, a coisa apertou: alimentos e combustíveis se tornaram escassos, as forças aliadas se aproximavam, os nazistas descambaram para um comportamento que alternava fanatismo e pânico. O período ficou conhecido como “Inverno da Fome”. “Occupied City” é, nesse prisma, puro horror.
Steve McQueen dirigiu uma enorme variedade de curtas, alguns associados às instalações artísticas que realiza. Entrou no mainstream dos longas-metragens com “Fome”, em 2008, e chegou ao topo da atividade com o premiado “12 anos de escravidão”, vencedor do Oscar de 2014 – num daqueles anos que a Academia optou por distinguir filmes de conteúdo social e político. Michael Fassbender, excelente ator, participou de algumas dessas realizações. McQueen toca uma carreira paralela de artista, igualmente (ou mais) intensa, voltado à produção de instalações multimídia (palavra também insuficiente) ambiciosas e conceitualmente complexas, de circulação restrita a museus, galerias e instituições culturais de prestígio. Entre outros fundamentos, são, para dizer de maneira simples e redutora, investigações sobre possibilidades inerentes do suporte audiovisual – que funciona como material em si, ferramenta documental, ou instrumento para contar histórias. Trafegar entre esses dois sistemas, entretenimento massivo (cinema) e especulação visual (arte) é o seu drive. Não é pouca coisa.
“Occupied City” situa-se na encruzilhada desses dois mundos. É um filme que poderia ser exibido em uma exposição, uma ou mais telas, espectadores entrando e saindo, assistindo um ou mais fragmentos – como quem abre um dicionário e lê dois ou três verbetes. Mas o cineasta (dessa vez) escolheu fazer do cinema seu local, para gerar uma sensação de continuidade, uma única sessão, começo e fim (intervalo incluído). Se for no streaming, o telespectador poderá dosar as 4 horas e meia do modo que lhe apetecer. O que importa, para usufruir dessa linguagem, é a imersão – a conjunção imagem (presente) e texto (passado.
As filmagens começaram um pouco antes da pandemia de Covid – que entrou em cena, inevitavelmente – e tomaram dois anos e alguns meses. A dissonância passado/presente de “Occupied City” comove e impacta. Uma cena mostra uma família em seu apartamento hoje, em momentos banais de lazer ou trabalho: a narradora, a jovem Melanie Hyams, descreve como aquele apartamento pertenceu a uma família judia deportada para um campo de concentração e assassinada. Em seguida, uma praça da cidade, usada para execuções de resistentes e manifestações fascistas, agora é local de protestos em defesa do meio ambiente. Ruas vazias, cerimônias relacionadas ao Holocausto, casamentos via Zoom, protestos antivacina e crianças descendo de trenó em parques nevados – coexistem com descrições de atrocidades e mortes.
Para Walter Benjamin, a história é o objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de agoras. A citação foi obtida com dois cliques, mais um agora imediato. No filme de McQueen, a história contada na narração está constantemente se dobrando sobre si mesma, como se o passado estivesse preso em algum lugar desse mundo etéreo que nos cerca.