O Tubérculo
Um filme de família
Por Vitor Velloso
Durante a Mostra de Cinema de Tiradentes 2024
Em um encontro de memória, entidades e um caráter mítico que transborda na representação de “O Tubérculo”, o filme de Lucas Camargo de Barros e Nicolas Thomé Zetune, exibido na Mostra Aurora da 27a Edição da Mostra de Cinema de Tiradentes, traduz um caráter experimental que é típico da Aurora, procurando digressões na encenação, na montagem e especialmente em uma fotografia de Super 8 que é tanto um cinema familiar quanto uma jornada hermética pela trajetória de seu protagonista.
O anúncio místico da necessidade de um retorno, promove o caráter dúbio da realidade concreta do que vemos na tela do cinema. Nesse sentido, o filme procura transitar entre uma realidade material e as projeções dos dramas ali envolvidos, mesmo que sem nunca expor exatamente qual a objetividade de algumas sequências que procuram pincelar a personalidade do personagem central. Por outro lado, “O Tubérculo” é um constante exercício de transição, isso porque para além da projeção e da materialidade, existe um esforço de encontrar uma musicalidade na narrativa, normalmente em sequências onde existe um caráter espiritual envolvido. E talvez esse seja o entrave que o filme tenha dificuldade em superar, ter a consciência de onde partem e para onde vão esses dois universos que parecem coexistir o tempo inteiro. De alguma forma, é como se uma áurea espectral pairasse diante de toda a construção, por outro, existem inúmeras tomadas que procuram contextualizar a região, em forma de repetição cotidiana, onde seguimos um objeto específico, por caminhos particulares, mais de uma vez.
Nesse transe “O Tubérculo” soa indeciso, ou sem um propósito para além da linguagem, pois justamente por não conseguir um ponto fixo para sua representação, essa frequente transição bambeia. Mesmo que isso implique em momentos interessantes, como o plano do cavalo voando ou a postura de assumir uma espécie de ironia quanto ao próprio filme, no diálogo entre os dois homens na natureza. Mas parte desse funcionamento, está na fotografia, assinada por Rodrigo Sousa e Sousa e Rafael Neri Martins Ferreira, que conseguem criar uma ambientação tão íntima, quanto macabra e cômica, fazendo com que o projeto possua uma multifacetação dentro de uma narrativa que tem essa proposta patológica-familiar.
Uma característica pouco programática e que adiciona um ar distinto para o longa, é que existe um reforço constante de uma certa identidade cultural, seja através dos planos regionais ou pela música, criando uma ambientação que não se permite estancar pelo assunto particularmente mórbido e trágico (ainda que os diretores assumam tratar-se de um “filme feliz”). Outro traço de “O Tubérculo” é sua obsessão por animais, urubus e cavalos especialmente, o que reforça um ponto de apoio do projeto nesse caráter mítico de algumas passagens, funcionando como uma espécie de observadores passivos, permitindo analogias com parte do desenvolvimento do filme, e claro, a passagens das três advogadas que “profetizam” ao mesmo tempo uma diretriz dessa estrutura narrativa. Essa estrutura com características próprias de uma “mitologização”, permanece majoritariamente em um campo epistemológico, transitando nessa campo de reflexões e ideias, sem conseguir exatamente uma passagem para a ontologia, e esse é o entrave do filme. Pois quanto mais avançamos na progressão e não vemos um objetivo concreto nesse campo de imagens, com caráter épico em determinados momentos, mais nos perdemos em um campo de linguagens que pouco tem a oferecer como proposição de debate em si. Talvez por essa razão, a recepção do projeto foi tão dividida após a exibição na Tenda. É muito menos sobre a possibilidade de interpretação e mais sobre uma articulação limitada entre os universos que são apresentados.
De alguma forma, “O Tubérculo” procura ser um longa inventivo em sua forma e, sem dúvida, marca presença pela sua produção ter sido realizada em Super 8. Contudo, a permissividade hermética, com sua lógica epistemológica, faz com que exista uma certa inacessibilidade desse “filme feliz” que está diante do espectador. E quanto mais refletimos sobre a obra, mais nebulosa ele parece, estancando as sensações de que há uma trilha sendo formulada e permitindo que possamos intuir que há um fluxo instável de ideias perpassando a tela.