Curta Paranagua 2024

O Sabor da Vida

A alquimia de transformar alimentos em prazer

Por Fabricio Duque

Durante o Festival de Cannes 2023

O Sabor da Vida

Há filmes que transcendem a própria experiência oferecida, por conduzir o seu público pelo caminho imersivo dos sentidos. “O Sabor da Vida”, dirigido pelo cineasta vietnamita Tran Anh Hung (de “O Cheiro do Papaia Verde”) é um deles ao personificar a comida por sabores, texturas e propósitos dos alimentos. É uma obra de cozinha. De degustação gastronômica,. Exibido na mostra competitiva a Palma de Ouro do Festival de Cannes 2023, o longa-metragem constrói toda sua narrativa pelo elemento temporal da espera e do sentir. De produzir uma atmosfera para que nós possamos fazer parte das criações culinárias. Cada prato é transformado em uma obra-de-arte, como se cada tempero significasse um “orgasmo” e uma conexão co-dependente da alquimia no simples ato de comer. E não, o título traduzido não tem a ver com o filme “O Sabor da Vida” (2015), de Naomi Kawase, ainda que tenha o tema da comida como pano de fundo. 

Este “O Sabor da Vida” (2023) é uma aula de combinação, cujo um erro e/ou um mínimo excesso e/ou falta pode desandar todo o menu prazer. O filme nos conduz, sem pressa, sem urgência e sem nenhum afobamento, por um balé de movimentos dentro dos bastidores do cozinhar. Desde primeiros procedimentos viscerais da preparação do banquete. Aqui, nós somos convidados a participar de todo o processo por chef experts, que sabem muito e até advinham os ingredientes dos molhos. Há um classicismo na imagem, na forma em que a câmera se movimenta, na luz da fotografia, mesclando nostalgia com a coloquialidade do instante vivido. A primeira sequência de todo esse balé durou 18 minutos. Sim, eu fui obrigado a olhar o relógio. E ainda não acabou. Mas o que faz um filme sobre cozinha, que mais parece um estético e elegante Master Chef, ser tão interessante? A maneira como tudo se desenvolve. Seu diretor sabe exatamente até onde quer ir. E não para só aí, trouxe ao elenco nomes de peso, como a atriz Juliette Binoche e o ator Benoît Magimel, que se transmutam plenamente em seus papéis, os incorporando de um jeito tão naturalista que deixam de interpretar personagens e se tornam as próprias personagens. 

O longa-metragem é também uma realista e não sensível crítica à burguesia. Toda essa organicidade tira a obrigação de ter encenar a ficção. Em “O Sabor da Vida”, esses cozinheiros comem numa mesa e as cozinheiras dentro. Há hierarquia entre sexos, ainda que trabalhem todos juntos nesse nível da alta gastronomia de produção artesanal, de experimentos arriscados, ousados e “audaciosos” na escolha do menu, especialmente por tentar simplificar o paladar com a memória afetiva da infância e/ou de momentos especiais do passado. Tudo aqui é exclusivo, único, sistematicamente estudado. Como disse, é uma transcendência. E sim, não há como não se referenciar o filme de animação “Ratatouille” (2007), que também imprime essas lembranças das pequenas felicidades da vida. Só que aqui, as personagens ganham existência real, perspicácia, inteligência e muito conhecimento de campo. A receita francesa provençal de legumes cozidos do século XVIII é substituída aqui pelo pot-au-feu, considerado “a quintessência da cozinha caseira francesa”, um dos pratos mais celebrados na França, que é um tradicional guisado de carne francês temperado com ervas aromáticas. Pode ser servido como sopa ou como prato principal. Um coringa da culinária. 

“O Sabor da Vida” é também sobre um romance de vinte anos, em que trabalho, amor, admiração recíproca e preservação da imagem andam juntos. Aqui, essa relação afetiva existe apenas na troca da paixão dos dois pelas comida. Esse amor está em um cozinhar para o outro. Em um buscar a superação em cada prato inventado. Em encontrar a perfeição máxima da criação gastronômica. A história ambienta-se em 1885, mas sua narrativa evoca o passado para que possamos olhá-lo como presente. Como mais real. Com mais liberdade. Menos engessado se fosse literal a própria ficção. Dessa forma, nós podemos sentir melhor e adentrar mais em toda essa imersão imagética e sensorial. Como disse, os dois atores não só encarnam “possessivamente” suas personagens, como já possuem o histórico de buscar papéis mais desafiadores e independentes. Pois é, mais uma vez encontraram o diretor certo. E que podemos entender um pouco mais de seu processo ao ler a mini biografia do Mubi. “Adoro a pintura americana, a música alemã, o cinema e a literatura japoneses, o trabalho contemporâneo vietnamita e a culinária italiana”, autodefiniu-se Tran Anh Hung. É o seu gosto pelas coisas.

5 Nota do Crítico 5 1

Conteúdo Adicional

Pix Vertentes do Cinema

Deixe uma resposta