O Roteiro da Minha Vida – François Truffaut
O homem que amava o cinema
Por João Lanari Bo
Festival de Cannes 2024
François Truffaut foi um cineasta profícuo e popular, um dos principais nomes da Nouvelle Vague, conjunto mais ou menos heterogêneo de filmes rodados na França nos anos de 1950 e 60. Sua morte prematura – em 1984, aos 52 anos – contribuiu para escantear sua obra e diluir sua presença nos cânones cinematográficos. “O Roteiro da Minha Vida – François Truffaut”, biodoc de David Teboul lançado em 2024, procura recuperar essa trajetória, contando com o apoio de Serge Toubiana na escrita do roteiro – autor, juntamente com Antoine de Baecque, de uma biografia seminal sobre Truffaut. Publicada em 1996, a obra revelou detalhes e circunstâncias desconhecidas da vida do diretor, dissipando alguns mistérios e lançando luz sobre sua curta (e densa) carreira.
Seria difícil condensar as quase 500 páginas do livro no documentário – apesar da edição um pouco acelerada, da verborragia de vozes e depoimentos. A ênfase de boa parte do filme recai sobre a infância infeliz de Truffaut, que sofria com racionamento de comida – eram tempos de ocupação alemã – mas também de racionamento afetivo. Mãe e pai (adotivo) não hesitavam em desvencilhar-se do garoto quando se apresentava uma oportunidade de viagem, fim de semana ou férias, até mesmo no Natal! “Os incompreendidos”, de 1959, foi a resposta de Truffaut adulto a esses infortúnios: na puberdade, o escape foi a sedução do próprio cinema, que se tornou um ritual obsessivo para ele, mais tarde evocado em diversas cenas de seus filmes.
Em uma das entrevistas de “O Roteiro da Minha Vida – François Truffaut” – ele foi dos mais visíveis cineastas na televisão pública francesa, gerando um arquivo imenso de imagens – o realizador admite o aspecto autobiográfico do filme de 1959, mas adiciona: entraram também dados da realidade, evocações variadas sem necessariamente implicarem memórias pessoais. Jean Cocteau apadrinhou a fita e Jean-Pierre Léaud, o ator-mirim, e veio a Palma de Ouro no Festival de Cannes. François, que àquela altura tinha feito dois curtas e se destacado pela postura combativa como crítico de cinema, ingressou definitivamente no mundo do espetáculo – pela porta da frente.
Outra figura paterna que paira sobre Truffaut é o fabuloso crítico Andre Bazin, que também morreu prematuramente, com 40 anos, em 1958. O documentário traz reconhecimentos dessa convivência, mas não explora a meteórica e inovadora incidência de Truffaut sobre a crítica cinematográfica, exemplificada com o demolidor texto “Uma certa tendência do cinema francês”, de 1954 – detonando a produção acomodada da época. Seus textos, carregados de frases objetivas e lancinantes, apresentavam-se como uma espécie de consciência do cinema francês. Essa postura política culminou na sua participação, ao lado de Jean-Luc Godard, nos protestos que levaram ao cancelamento do Festival de Cannes em 1968 – um desdobramento da rebelião de maio daquele ano, em Paris. Truffaut, cumpre notar, nutriu na juventude alguma simpatia pelas posições de direita, segundo Toubiana/de Baecque.
A relação com Godard deteriorou-se no início dos anos de 1970, com o comentário ácido do franco-suíço sobre “A noite americana”, singelo e eficiente exercício de metalinguagem dirigido por Truffaut naquele ano. Ontem vi ‘A noite americana’. Provavelmente ninguém te chamará de mentiroso, mas eu o chamo, disse Godard: Truffaut, em artigo intitulado “A concierge do cinema francês”, no Le Monde, respondeu; não estou nem aí. Seu comportamento é de um merda em um pedestal. “O Roteiro da Minha Vida – François Truffaut” trata desse pugilato verbal, mas superficialmente. Não tinha como evitar, à época teve muita repercussão: a relação dos dois já foi objeto de um interessante livro, e provavelmente irá gerar um novo documentário.
François Truffaut também tinha faro de editor de livros, além de ser leitor voraz: sua iniciativa de entrevistar Alfred Hitchcock, durante uma semana ininterrupta em Los Angeles, produziu uma das melhores publicações da seção cinema das livrarias, referência para estudiosos e público em geral. Hitchcock sempre foi apreciado pela Cahiers du Cinema – e o resultado foi soberbo, consolidando o prestígio de Truffaut no mundo anglo-saxão. Não foi casualidade o convite que Steven Spielberg fez a ele para o papel de cientista-chefe em “Contatos imediatos do Terceiro Grau” – foi uma homenagem.
Restam, enfim, os filmes de Truffaut, que podem obter com o documentário uma circulação mais generosa no streaming. Não apenas os mais admirados, com “Jules e Jim” e “O Último Metrô“, mas também os esquecidos, como a comédia patológica/misógina “O homem que amava as mulheres”. E outros tantos…