O Pássaro Pintado
Sangue e película
Por Vitor Velloso
Baseado no livro homônimo de Jerzy Kosiński, “O Pássaro Pintado”, que não li, estreia na plataforma de streaming Cinema Virtual. Pouco antes de assistir ao filme recebo aviso de um amigo: Boa sorte, vai precisar ter sangue de barata.
A advertência foi pouco proveitosa, em trinta minutos já estava exausto. O sentimento não vinha de uma violência que era conduzida através de um olhar crítica da sociedade e do momento político do momento, Segunda Guerra Mundial.
A proposta é direta, uma sucessão de sequências de uma criança polonesa sofrendo, sofrendo e sofrendo. E no meio desse caos desgraçado, a violência generalizada de todos ao seu redor. Se o filme de Václav Marhoul, por um lado, consegue criar a atmosfera de inferno diante dos acontecimentos, o purgatório como um sonho, ele apenas estetiza toda essa brutalidade em sua mise-èn-scene. Concebe um preto e branco que aliado aos enquadramentos incisivos, demonstram um universo árduo, sem perdão, compaixão, muito menos solidariedade. E onde alguma aproximação com o clássico “Vá e Veja” pode ser feita a partir dessa radicalização, a associação para por aí. Pois “O Pássaro Pintado” não dá tempo à sua narrativa, seus fragmentos são urgentes, são mutilados em tempo e espaço para que mais uma explosão de violência ocorra.
Essa pressa, inócua de materialismo, é crescente durante as quase três horas de duração do filme, o que causa um efeito terrível para o projeto, tudo parece tão cru e vil, em um espaço tão curto, que o espectador passa a não ser impactado mais pela sucessão de infernos. Após uma hora de filme, estamos sedados, as imagens perdem qualquer força, os enquadramentos viram uma prosa cotidiana e tudo se transforma em um monótono monólogo de vileza e inumanidade. A repetição se torna tão comum, que o tédio toma conta do projeto, não sentimos empatia, tristeza, raiva, pois toda as instituições, privadas (particulares) e públicas, vão se deteriorando. A moral se torna um sonho inalcançável, dando lugar à honra.
E aqui nasce uma dicotomia importante que o filme consegue digerir bem, uma distanciamento entre o orgulho e a dignidade. E o primeiro só pode vir à tona, por quem se encontra em algum lugar de poder, pois a dignidade vira uma espécie de piedade concedida por quem possui o controle da situação, ou parte dele. Essa diferenciação é importante para que se compreenda as razões empíricas do sofrimento do protagonista, já que o longa abandona qualquer aceno a uma leitura crítica da sociedade no âmbito político (o que é compreensível pelos símbolos nazistas que vão se espalhando, mas faz o projeto perder peso).
O elenco estelar presente aqui, Udo Kier, Stellan Skarsgård e Harvey Keitel não consegue sustentar às três longas horas de duração, eles são episódicos como tudo que surge no filme. Exceto a violência, que permanece sempre.
E se o filme não vai de encontro à proposta política inerente ao material, não o faz apenas por centralizar sua narrativa à criança, mas por uma necessidade intensa de transformar o jogo da violência em uma espécie de moral própria, sendo ultrajante em sua tentativa de provocar alucinadas fugas da sala de cinema, ou delírio visual dos acomodados, quem sabe a compaixão de um louco? As questões são de fácil digestão, o filme não. E talvez por isso ele tenha conseguido tantos elogios e aplausos em alguns lugares do mundo, porque ele concilia seu jogo formal à um agrado cinematográfico particular, enquanto mutila sem parar cada um dos corpos que surge na tela.
“O Pássaro Pintado” não é inócuo como alguns acusam, mas está longe de ser um retrato auto consciente do Holocausto, por se tratar de uma questão própria da natureza do ser humano. Escrever sobre os “valores” que são rompidos aqui, torna-se exercício de complacência com o “vilão”, pois a mesma palavra foi utilizada para defender tudo que é projetado na tela. Não trata-se de valores, humanidade, vileza, política etc, é um filme que urge em ganhar seu espaço no nicho artístico, fazendo isso com dois pés na porta e um na câmera.
E se o filme é “bonito”, ele o é por uma questão de exploração da paisagem e do preto e branco, mas é sempre bom lembrar que a beleza não está só no palco e é onde a estetização da brutalidade ocorre, em nome do “cinema de arte”.