Curta Paranagua 2024

O Pântano

O gozo, ainda que nos escombros da ordem

Por João Lanari Bo

Festival de Berlim 2001

O Pântano

O que faço é tudo mentira, é tudo artefato. Não acredito na verdade e se há algum efeito de verdade nos meus filmes, é um milagre. Mas está tudo armado, tudo mentira, tudo escrito, tudo posto, tudo falso. Acredito nisso, acredito na falsidade. E acho que é a única maneira de perceber alguma coisa. Para mim, escrever é um processo fundamental, porque é onde coloco todas as mentiras, por assim dizer, é onde se constrói todo aquele artifício. (Lucrecia Martel)

O Pântano”, longa de estreia da diretora Lucrecia Martel, é um assombro: “La Ciénaga”, título original, remete a uma pequena cidade no norte da Argentina, perto da Bolívia, na área anexa à Salta, capital da província do mesmo nome – onde nasceu e cresceu Lucrecia. É também o visual quase putrefato que se encontra a piscina no sítio da família de Mecha, uma das protagonistas. Mas é sobretudo uma metáfora da circunstância mental que contamina a tudo e a todos, um pântano onde sentimentos e desejos se afundam, apodrecem e corrompem-se, não necessariamente nessa ordem. Um círculo narrativo que começa com um pequeno incidente à beira, claro, da piscina: copos vazios e mãos segurando uma garrafa de vinho ocupam o campo visual, na trilha sonora o ruído do derramamento do vinho gera um som extremamente próximo, assim como o barulho do gelo sacudido pela mão que segura a taça. Uma mulher, Mecha, levanta-se para carregar algumas taças, escorrega na superfície coberta de musgo, cai e se corta. A exposição do sangue desestabiliza o ambiente e detona a largada do filme.

Várias pessoas podem ser vistas nessa breve sequência, sem destaque – os corpos são despersonalizados, como se estivéssemos encarando zumbis. De repente, aqueles homens e mulheres começam a arrastar as espreguiçadeiras onde estão deitados; o som adquire maior força e autonomia, fica quase insuportável. Esse tratamento sonoro foi singularizado pelo crítico argentino Roger Koza:

Martel pertence àquela tribo minoritária de cineastas que compreenderam que o som não é uma questão de técnicos e máquinas, nem um complemento naturalista das imagens. O som é uma ontologia exigente, um sinal da realidade com menor probabilidade de cair sob o controle da linguagem ou, em qualquer caso, a expressão mais instável do mundo e das suas aparências. Uma imagem se fixa, um som se espalha. Por isso, qualquer cineasta que saiba utilizar essa dialética intensifica as possibilidades expressivas do cinema. Martel brilha como poucos; Martel vê com os ouvidos.

O Pântano” exibe sem pudores vários personagens de diferentes idades, que acorrem ao sítio para escapar do calor – as conexões familiares entre eles não são evidentes à primeira vista, é preciso atentar para os detalhes do quadro, para o soslaio dos movimentos, para lograr alguma identificação. Não há trama central ou secundária, nesse mundo de fragmentos fluídos tudo pesa e impacta. O que importa é registrar a passagem inútil do tempo, a dissipação de energia e a inatividade das pessoas, boas ou más. Promiscuidade é o tom: não apenas entre jovens e adultos, mas também em relação às domésticas, collas – como são chamados de forma pejorativa os indígenas andinos (quéchua e aymara), imigrantes bolivianos – vistos com desdém por Mecha e sua família. Uma corrente libidinal perpassa a atmosfera decadente: a filha adolescente de Mecha, Momi, deseja Isabel, a empregada colla. Mercedes, amiga de Mecha e ex-amante de seu marido, o imprestável Gregório, passou a compartilhar seus amores com José, filho de Mecha e Gregório. Mecha – encarnada na tela por Graciela Borges, grande dame do teatro e cinema argentinos – absorve essa suspensão decadente do tempo e decide enfurnar-se na própria cama, expulsando por tabela Gregório do quarto por conta da tintura caseira do cabelo do canastrão, que suja os travesseiros.

Não há hierarquia de conflitos e personagens em “O Pântano”. Conflitos, só em estado de potência – como disse Lucrecia, não há verdades ocultas a serem encontradas pelos personagens, nem há qualquer ligação entre causa e efeito. Trata-se de um narrativa não-linear, que busca os (secretos) códigos compartilhados na vida de uma família e próximos, sem cronologias, pontos de virada ou outro estratagema. Isso não significa ausência de roteiro, pelo contrário, cada fala do filme é rigorosamente extraída do texto de Lucrecia, inspirado numa tradição oral familiar. O roteiro ganhou prêmio em Sundance para cineastas emergentes, em 1999: o júri sugeriu que ela reescrevesse o texto para seguir uma estrutura mais tradicional em torno de um ou dois protagonistas, mas ela optou, felizmente, por manter o tratamento original.

É a diretora que disse: quando terminei o filme percebi que a história é muito parecida com a forma como minha mãe conta as coisas: proliferação, digressões, silêncios…

5 Nota do Crítico 5 1

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