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O Menino e a Garça

Onde vivem os monstros

Por Fabricio Duque

O Menino e a Garça

A grande maravilha do cinema é que parece não haver limites para invenções narrativas. Ao se criar novos caminhos e camadas interpretativas para metáforas e simbolismos, nós espectadores somos imersos em uma sensorial experiência visual. O Studio Ghibli (que significa “vento quente do deserto”), que já traz uma aura cultuada por cinéfilos e amantes do gênero, consegue traduzir tudo isso pelo existencialismo surrealista que imprime em suas obras de animação, cujas personagens são retratadas pelo excesso das características físicas, expondo na aparência externa o que se encontra no mais fundo dos interiores de cada uma delas. Toda essa evocação idiossincrática, e de unicidade personificada (das particularidades individualistas, intrínsecas e genuínas do que ninguém pode fugir, porque já é assim e não há jeito de mudar), cria a estranheza no nosso olhar. Há ali algo “mutante”, exagerado e alegórico. Suas personagens estão sempre em jornadas da vida, em propósitos missionários, ora de crescimento pessoal, ora de contribuição de ajudar os outros, como guerreiros e com orgulhasas cicatrizes. Em “O Menino e a Garça”, escrito e dirigido por Hayao Miyazaki, um dos indicados ao Oscar 2024 de Melhor Animação, a história é sobre o luto e seus estágios de provação de um filho e sua mãe.

Este longa-metragem, “O Menino e a Garça”, baseado no livro homônimo de Genzaburo Yoshino de1937, constrói um universo único para se aventurar no realismo fantástico, numa liberdade poética por conta da animação. Todo esse mundo paralelo (e atravessado) cria no público uma viagem transcendental. Suas portas (portais), seus caminhos, suas sombras, seus incêndios, suas sirenes, e até mesmo a metafísica do movimento imagético (o efeito de dentro do fogo), tudo é simbolismo espelhado de nossas realidades mundanas, que aqui se desloca do próprio tempo abordado, gerando uma liberta atemporalidade. Não, por mais que pareça, não é simples definir a imensidão de camadas psicológicas que envolvem o filme. Outra questão que “O Menino e a Garça” corrobora das características do Studio Ghibli é a mudança de ideias. É o acordar do pensamento já internalizado do imaginário popular, como apoiar o Exército do Governo e os soldados na rua (talvez porque o pai de nosso protagonista seja um dos membros).  

“O Menino e a Garça” é sobre se reconstruir. Sobre aceitar a perda. Sobre transpor o luto. Sobre se acostumar com a saudade. E para toda essa condução, é necessário então engendrar uma odisseia, por dentro de mundos conflitantes, pelo viés da fantasia, do ilógico e da imaginação, esta que o protegerá de sofrer tudo de uma vez. Uma outra característica da narrativa é buscar o tom mais ingênuo, mais previsível, mais puro e mais de inocência perdida, por meio da emoção e de suas músicas mais sentimentais. Pois é, esse artifício é tão recorrente, que em alguns momentos soa até piegas, ainda que entendamos que isso faça parte de todo o processo: encontrar um tempo da poesia da simplicidade das coisas. Nós embarcamos juntos na aventura imaginada do protagonista. De permissão a experiências surreais e ilusórios e dessa forma tudo ali se torna possível e crível. Nós vemos o subjetivo da personagem. Suas percepções sobre a madrasta e sobre sua nova vida. Sobre a ausência do pai. A criação então de universos mágicos (jardins secretos e “coisas misteriosas que acontecem”) é a única solução para seu refúgio. Para conservar o sonho, a lágrima e o silêncio com a curiosidade, a teimosia, o transe e a certeza de estar seguro dos perigos consequentes. E especialmente pelo som que aumenta os ruídos e que parece uma fluida melodia. Os passos são mais marcantes e até mesmo o que ouvimos da performance da garça.

O filme traz também questões estruturais de hierarquias sociais. De uma conservação aristocrática dos que servem e dos que são servidos. As roupas e os tratamentos subservientes aos “patrõeszinhos”. Até mesmo o contato com a garça, a co-protagonista, que evoca toda essa realeza japonesa da crença-tradição-moda-costume ancestral, educadamente formal (de respeito e “fazer o que é certo”), numa estética de organização simétrica. Há uma nostalgia clássico em tudo isso. “O Menino e a Garça” é acima de tudo uma crítica a uma sociedade e contra a toda essa vida convencional demais, vista aqui como limitada e vulnerável, pululada por “tolos”. Que repete opiniões alheias prontas, como quem lê muito “fica louco”. Muito vem da fotografia impressa, que sugere pinturas em movimento. 

“O Menino e a Garça” é uma metáfora do amadurecimento. De vencer os medos da jornada. De que não existe maniqueísmos. Ninguém aqui é monstro. Todos possuem um trabalho-missão de equilibrar os mundos (um que de “Soul”, talvez por se comportarem como espectros esperando se tornar humanos). De que é preciso seguir as decisões mais improváveis do caminho. Como se estivesse no mundo de “Alice no País das Maravilhas”. E nesse jogo “terapia de choque” de reconstrução psicológica, duelar com as forças ocultas (inclusive a morte) faz parte do pacote dessa mudança de nível, com ou sem penas mágicas, com a arrogância do poder, com as armadilhas. Sim, há muitas e muitas camadas. Inferimos que eles estão no inferno (um que de “Caverna do Dragão” e /ou à moda do filme “Amor além da Vida”), uma passagem “presente” ao futuro para vivenciar tudo, voltar e aceitar, entre pedras puras livres de maldades a um mundo melhor; periquitos; lendas; e sentir de novo de que pertence ao meio em que vive. “O Menino e a Garça”, como disse, é uma experiência espiritual de filosofia cognitiva, que almeja reencontrar a simplicidade das pequenas felicidades. 

3 Nota do Crítico 5 1

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