O Hospedeiro
A humanidade em baixa
Por Fabricio Duque
Em uma entrevista no Festival de Cannes, durante a coletiva de imprensa de “Aquarius”, perguntei a seu diretor Kleber Mendonça Filho como podia explicar a força do cinema pernambucano. Ele não sabia. A mesma pergunta foi feita ao realizador Bong Joon Ho, por “Parasita”. E de novo a mesma resposta indecifrável. Mas há uma distância explícita. Se aqui, nossas obras tentam acontecer apenas pela garra do talento, lá na Coreia do Sul, os diretores contam com a ajuda do governo e assim podem ganhar Cannes e o Oscar.
Em “O Hospedeiro” (2006), Bong Joon Ho, ainda que com financiamento público, constrói uma crítica e revolucionária fábula de terror político-social, ao “desmascarar” pessoas, tanto comuns, quanto especialistas, que se comportam como robóticos indivíduos com monstros reais, mutantes de uma “ordem erro” (o despejo consciente – criminosa – de uma substância tóxica) de um cientista despreocupado em causar danos ao meio ambiente. Se em “Parasita” é apresentado uma “margem” que precisa sobreviver de alguma forma, aqui, nós somos doutrinados com a expressão “Seo-ri”, um “direito dos famintos” e não um “roubo”.
O longa-metragem consegue transformar referências cinematográficas de icônicos filmes em uma experiência única e lapidada. Há um preciso apuro técnico que se preocupa em equilibrar o tempo da percepção, entre a espera, a contemplação cotidiana, a sensação do perigo iminente, a ação esperada e a quebra-reviravolta da própria trama, que por sua vez, ainda que conduza pelo naturalista tom da emoção real, não suaviza, tampouco facilita o final feliz. É realista e ponto, até porque o que acontecerá durante os ataques de um monstro.
“O Hospedeiro”, como já foi dito, invoca a sensação de terror possível. Nojento e escatológico como “Alien – O Oitavo Passageiro”, de Ridley Scott. A observação do parque remete a “Tubarão”, de Steven Spielberg. Os procedimentos de “evacuação” e “proteção”, à moda de “E.T. O Extraterrestre”, tornam-se quase patéticos, como um número pastelão de alguma obra de comédia de Charlie Chaplin. Sim, Bong é assumidamente cinéfilo, e ter estudado na California, nos Estados Unidos, ajudou a condensar seu olhar.
Dessa forma, usou e abusou da arquitetura hollywoodiana de prender o público pela ação, mas não se utilizou dos sensíveis, moralistas, sentimentais e apelativos gatilhos comuns, característicos na sociedade americana. Sim, aqui a criança “raptada” “sonha” com a cerveja “amarga” que aprendeu a tomar com pai. “Você já está no sexto ano, então pode”, explicou. E ou quando o “peixe mutante” vinga-se “comendo” seus “assassinos”. Não há como ser diferente, Bong apresenta mais um filme Peta. Um recado à humanidade em forma de ficção. Um alerta do que nossa culpa pode causar.
“O Hospedeiro” também se desestabiliza, ainda que tenha um controle absoluto da condução. De captar detalhes para desenvolvê-los com sutileza e quando precisar. Se precisar. A instabilidade acontece pela recorrência dos chamados alívios cômicos, que neste caso, são transformados em caricaturas, com o intuito de gerar o riso fácil. E/ou pela “ajuda desenfreada” ao “inusitado” herói que faz tudo para salvar sua filha. Sim, há um pouco disso em todos os seus filmes, mas precisamos lembrar ao espectador que este é seu terceiro longa-metragem.
Só que o filme convence e nos interessa por essa falta de certeza. Tudo é “sujinho” demais em uma organicidade coloquial e espontânea, dividida por cenas-esquetes que no contexto causam uma sensação boa, especialmente por seu final aberto, adicionando mais uma piada de vulnerabilidade ao público. Talvez seja esse o segredo da força do cinema coreano: a despretensão. De criar um monstro para metaforizar a impotência versus coragem. De desenhar a histeria, de catarse libertadora, a fim de mostrar que ainda se importam.
“O Hospedeiro” é também sobre uma família disfuncional e completamente normal. Que sentem amor uns pelos outros e demonstram de formas peculiares. É um filme sobre a essência envolta no caos e rodeada de “idiotas”. Uma aterrorizante história que nos mostra o poder de uma simples ação. Que pode mudar e destruir tudo. Claro que aqui superrápido por causa da necessidade do roteiro.
Concluindo, “O Hospedeiro” é um filme de momentos, metáforas-críticas sociais e analogias capitalistas, que nos confronta e, de forma mais cruel possível, nos expõe ao nosso vírus de cada dia: o que aumenta a máxima Mafalda de ser de que “estamos com a humanidade baixa”, perdidos, como zumbis modernos e auto-destrutivos. Escrevo este texto durante a pandemia do Coronavírus, um novo estágio do Sars, e confinados nós nos damos cota que Sartre esqueceu de nos incluir, porque nós também somos o nosso inferno.
1 Comentário para "O Hospedeiro"
Que filme assombroso, entre outras inúmeras conquistas, pela soberba trilha – rasgos de Piazzolla e Villa-Lobos- que pincela a temática transmitindo-nos emoções que somente a junção musical à tela pode perfazer! Sátira e crítica mordaz por aqui em enquadramentos nas cenas, personagens e caracterização do “monstro” como algo totalmente verossímil complementam com maestria esta renderização estética de direção eficaz neste longa e divertidamente assumido trabalho cinematográfico, merecendo um 10!