O Fundo do Coração
Neon-realismo
Por João Lanari Bo
“O Fundo do Coração”, dirigido por Francis Ford Coppola e lançado em fevereiro de 1982, entrou de cara na lista dos fracassos recônditos da história do cinema: custou 26 milhões de dólares, e arrecadou pouco mais de 636 mil na bilheteria! No tempo em que os mercados secundários do audiovisual – videocassete, streaming, internet, mesmo TV – não existiam ou apenas engatinhavam, não foi nada fácil. O estúdio do diretor, o mítico Zoetrope, faliu e entrou com pedido de concordata. Inicialmente estimada em 2 milhões, o custo final da produção foi estourando à medida em que Coppola soltou as rédeas da ambição e do desejo – e teve de pedir emprestado um volume colossal de recursos ao Chase Manhattan Bank.
Passou os próximos dez anos trabalhando para pagar dívidas, confessou amargurado. Alternando entre o banal e o sublime, a fita é absolutamente deslumbrante, iluminada, literal e metaforicamente, por uma luz que extrapola qualquer manual de fotografia – Vittorio Storaro, o genial iluminador – e embalada por uma soberba trilha sonora escrita por Tom Waits, cantada pelo áspero Waits e a límpida Crystal Gayle, supostamente, como sugeriu um crítico, como Zeus e Hera fariam no Olimpo. O contraste entre personagens realistas e modestos com o cenário fantástico é a mola mestra que move a narrativa. Em um momento, Frank (Raul Julia, inacreditável) coloca um vinil na vitrola: a canção é The Carioca, extraída do inesquecível Flying down to Rio, com Fred Astaire, Dolores del Rio e Gingers Rogers:
Say, have you seen the Carioca?
It’s not a foxtrot or a polka
It has a little bit of new rhythm
A blue rhythm that sighs
O riscado do vinil aplaina as hesitações de Frannie (Teri Garr, esfuziante), espremida entre o impasse amoroso com o parceiro Hank (Frederic Forrest, working class) e a sedução de Frank, garçom e falso cantor/pianista: a luz quente do quarto de Frank, laranja e vermelho, contrasta em montagem alternada com a cena azul lunar em que Hank, ao relento no carro do amigo Moe (Harry Dean Stanton, perfeito), beija Leila (Nastassja Kinski, igualmente inacreditável).
Este é o momento capital, o ápice da banalidade: Frannie e Hank, exauridos pelos cinco anos de vida em comum, ele mecânico, ela atendente de agência de viagens, cedem ao desejo da ruptura, da quebra da monotonia, da tentação da aventura – nada mais banal, se pensarmos dentro dos cânones dos surrados manuais de roteiro. Inserida no cenário neon-realista de “O Fundo do Coração”, no mais puro artifício possível – tudo é fetiche – a trama se desvela e revela uma dimensão inaudita: o mundo dos afetos, essa dimensão diáfana que nos assalta a todo instante, é um mundo de luzes, de sensibilidades iluminadas.
You’ll dream of a new Carioca
Its theme is a kiss and a sigh
You’ll dream of a new Carioca
When music and lights are gone
And we’re saying goodbye
Quem canta na vitrola de Frank é a impagável “Movita” Castaneda, que se casaria em 1960 com Marlon Brando, oito anos mais moço do que ela. Brando, esse notável ator, de papéis memoráveis sob a batuta de Coppola. Uma das críticas que pesou sobre “O Fundo do Coração” é a ausência de estrelas: como se a presença de rostos estelares, dispositivo básico da narrativa clássica, fosse suprir a imagem e comover os corações nessa produção inovadora. Não, o filme abre e fecha com uma cortina que nos deixa entrar na peça que vamos ver: realismo, glamour, é tudo apenas um filme. A comoção está em outro lugar: diz a lenda que Coppola se inspirou enquanto vagava pelas ruas de Tóquio com uma cópia de “Afinidades eletivas” de Goethe debaixo do braço, refletindo sobre o uso de cores do teatro Kabuki.
Por exemplo: o vermelho representa raiva, paixão ou crueldade, e o azul escuro, tristeza ou depressão; azul claro ou verde, calma; roxo, nobreza; marrom, egoísmo; e preto, medo. O cenário escolhido para ambientar esse drama de emoções luminosas foi Las Vegas, renascida no Zoetrope: até o aeroporto foi recriado no estúdio, e o avião construído usando o nariz de um avião acidentado. Na mão de Storaro, as paredes se dissolvem, as cenas se bipartem no mesmo plano e os números de dança, coreografados com ajuda de Gene Kelly, se transformam em fantasias tingidas de neon.
When music and lights are gone
And we’re saying goodbye
When music and lights are gone
And we’re saying goodbye
De tão generosas, as imagens parecem levar o filme à beira de um abismo: o que nos salva é a leveza da ternura.