O Dia Que Te Conheci
Um pão de queijo carregado de referências
Por Fabricio Duque
Durante o Festival do Rio 2023
Sim, a força de um realizador de cinema está na experimentação de novas linguagens, narrativas e até mesmo referências a outros filmes. Mas também reside muitas das vezes no contrário, em um cenário de contemplar conversas de vidas acontecendo, que é tão desafiador quanto, especialmente quando a base desenvolvida é a própria simplicidade da criação, em que o material bruto se concentra nas escolhas situações de um cinema mais direto, mais orgânico, mais livre em suas improvisações ensaiadas. Um desses filmes que quer usar os lados explicados acima é “O Dia Que Te Conheci”, do realizador mineiro André Novais Oliveira, que integra o time da Filmes de Plástico (responsável por um de seus filmes anteriores, “Ela Volta na Quinta”, e, também “Marte Um”, de Gabriel Martins).
“O Dia Que Te Conheci” pode até ser considerado ser considerado ambicioso apesar de toda essa compostura buscada em seu roteiro. Não, não é fácil construir uma mise-en-scène simples sem ser simplista. Aqui, o longa-metragem é integrado à cidade de Belo Horizonte e a seu bairro Contagem, aos passantes, às cervejas em quiosques, mas também se desenvolve nos interiores de uma escola, de um apartamento e de um carro. Sim, chega a ser quase impossível nós não referenciarmos ao cineasta sul-coreano Hong Sang-soo que tem como característica típica em suas obras a captação naturalista da própria vida, como se pausasse o tempo e o transformasse em uma metafísica mais sensorial. “O Dia Que Te Conheci” possui isso, visto que a trama se traduz por instantes, acasos, afinidades e controversas. Nós também percebemos um que de Woody Allen, de Yasujirō Ozu, de Jean-Luc Godard, de François Truffaut, de Jacques Tati (e seu balé de movimentos sincronizados), de Jacques Demy (e seu universo de fantasia possível). E logicamente o realizador iraniano Abbas Kiarostami e suas cenas dentro de carros em movimento. Há um pouco de cada cinema em “Quando Eu Te Conheci”, inclusive formato de tela diminuído.
Outra coisa percebida é curiosa. Antes do filme ser exibido na mostra competitiva do Festival do Rio 2023, estava eu em Belo Horizonte para apresentar a Mostra A Magia dos Pixels: Espelhos Animados da Realidade no Centro Cultural Banco de Brasil, e não pude deixar de perceber que nosso primeiro olhar sobre esta cidade mineira é encontrado pelos muros e suas expressões artísticas e/ou políticas. Na verdade, toda cidade tem isso, algumas até mais, como São Paulo e o Kobra; Rio de Janeiro; Berlim, mas esta em questão consegue nos atravessar talvez por causa de um específico artifício complementar: o costume cômico dos mineiros (de graça intrínseca), de não só “zoar” a vida com genuína ingenuidade, mas especialmente a eles mesmos, ora quando precisam acordar cedo; ora quando decidem tomar um chopp, ora quando “trocam competições” sobre remédios controlados. “O Dia Que Te Conheci” tem isso também. Os muros e os espaços mais “underground” e de periferia ganham protagonismo e conversam com a gente, nos mostrando um tom mais realista e humanizado dessas existências, mesclando personalidades, de Malcolm X até Michael Jackson, passando por Elza Soares e Grande Othelo.
Em “O Dia Que Te Conheci”, André quer mesmo o coloquial tempo-ambiência (às vezes 1978, mas acima de tudo atemporal – uma homenagem a sua mãe, falecida recentemente) que antecede às ações, quer estender a abertura com um Rap brasileiro, por exemplo, entre imagens familiares, bibelôs, reflexos do espelho e imagens estática. Este pode ser considerado como um filme de esquetes-vivências, de crônicas-causos do dia-a-dia, que filma copo do Shrek (que vinha no ovo de páscoa) servindo como vaso de planta ou o do Thundercat; que filma as viagens de ônibus; ou uma menina que joga videogame. Tudo parece uma grande estilizada e estética experiência popular (dentro de um propósito que soa mais amador e caseiro). “O Dia Que Te Conheci” tem narrativa fabular, de distanciar a realidade com a própria realidade, criando um universo-ideia do conceito do real em busca de conexões, de flertes e de intimidades e de prolongadas e silenciosas caminhadas.
Sim, mas o grande mérito de “O Dia Que Te Conheci” é de verdade seus atores: Renato Novaes (o irmão e a “cara-clone” de André Novais Oliveira) e Grace Passô (que já trabalhou diversas vezes com o diretor e já conhece as manhas, esbanjando naturalidade), entre músicas de Alaíde Costa, por exemplo, e o “encontro com a saudade”. Outro ponto curioso é a saudade. Nós sempre projetamos um desejo de uma nostalgia de não vivida. Quando “O Dia Que Te Conheci” personifica nossa vida de cada dia, consegue então atravessar camadas, encontrando a imagem como metalinguagem. É, pode até aparentar que tudo é apenas uma história romântica de Zeca que conhece Luisa, mas não, há muito mais ingredientes neste feijão tropeiro. Um típico pão de queijo.