Marte Um
Bandeiras vermelhas
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Sundance 2022
Para alguns, o ato de assistir a um filme em sua primeira exibição, especialmente em festivais de cinema, pode soar apenas como um preciosismo, quase uma mimada vaidade ególatra de poder. Mas não é. Pelo contrário. Essa “obsessão” que muitos críticos seguem explica-se única e exclusivamente por causa da “virgindade do olhar”. É nesse momento que um filme está mitigado de influências da mídia (e das opiniões dos espectadores) e dotado de uma plena liberdade que gerará uma pluralidade de análises, com suas surpresas e/ou dissabores. É aí que a obra ganha vida e deste momento há dois caminhos a percorrer: o antes vulnerável e o depois julgado. Foi o que aconteceu com “Marte Um”, que assisti na primeira exibição da seleção oficial do Festival de Sundance no início deste ano; que agora chega aos cinemas brasileiros, após integrar a competição do Festival de Gramado 2022 (sendo premiado como Melhor Filme pelo Juri Popular, Melhor Roteiro, Melhor Trilha Musical e Prêmio Especial do Júri). E especialmente por ser o filme escolhido para representar o Brasil no Oscar 2023. Mas se a “urgência” é tão importante, qual o porquê da minha demora em escrever estas linhas? A resposta não poderia ser mais direta: é que existem camadas demais na obra, muitas que exemplificam com precisão cirúrgica o que acontece no nosso novíssimo Cinema Brasileiro.
“Marte Um” corrobora a nova alma desse cinema brasileiro pela tradução lúdica-realista da estética da produtora mineira Filmes de Plástico sempre com um que fantasioso à moda de Michel Gondry. Seu realizador Gabriel Martins, em direção solo desta vez, quer construir a ideia utópica de um inclusivo, justo e possível presente-futuro. Ao assumir uma estética visual de coloquialidade mais caseira, em que improvisações e limitações técnicas (principalmente interpretativas) são transformadas em linguagem (argumentada sempre pela questão da pouco verba coletada para a produção), o longa-metragem torna-se o que acredita: uma obra que metaforiza seu discurso, que oferece ativismo aos ávidos pela atual problematização social e pelo resgate da reparação histórica.
Assim, o filme em questão aqui parece existir mais pelo cinema conceito, quando quer a inclusão de todos os problemas sociais e também abordar todos os tipos de preconceitos. Ao direcionar o foco a esse caminho, “Marte Um” passa a ser conduzido pela superfície, e sem tempo, logicamente, mitiga o aprofundamento do tema, “atirando” sem mira no vazio. Podemos até dizer que este vai mais ao encontro de uma novela, estruturada mais ao moderninho, visto que se utiliza de artifícios básicos, clichês, comuns e confortáveis para gerar um conflito, como o funk; os encontros com os Alcoólatras Anônimos; a olhada lésbica; a câmera subjetiva; a narrativa fragmentada; a avó que não deixa o neto lavar uma louça, porque “isso é coisa de menina” (já condicionada ao machismo estrutural); e/ou a “privatização do início da Era Bolsonaro”, por exemplo. Sim, com todo certeza, “Marte Um” é cinema social em sua essência, em sua personalidade e em sua luta (a de igualdade não polarizada de um universo de pessoas pretas vivendo economicamente preparadas).
Compreendo e acho mais que necessário, quase obrigatório, trazer toda essa insatisfação cidadã ao roteiro, até porque para o realizador, fazer um filme é a melhor forma de catarse, de expurgar demônios, de expor o desespero-impotência com um sistema que não foi feito para pensar no povo, tampouco em sua dignidade, apenas “massa corrida”. Sim. Mas o que realmente não entendo é a razão da não integração com uma construção de cena e de interpretação, ainda que tenha sim um trabalho técnico de fotografia saturada e contrastada quase sem cor de uma terra orgânica. Será proposital essa ambiência aludida a Marte, planeta que foi batizado em homenagem ao deus romano da guerra? A de afastar o espectador pelo comportamento gravitacional? Talvez nem a retórica explique.
Em “Marte Um”, nós podemos até citar Freud para dizer que este é um filme ansioso, porque desiste do presente e sofre de excesso de futuro. A própria premissa é a de colonizar um novo planeta pelo gênero de ficção-científica sobre um Brasil de realidade já dominante, que reverbera e influencia na intimidade de uma família. Um desses pontos de ansiedade pode ser indicada com a frase “Brasil não é para amadores”, em que um homem entra no bar, começa a reclamar, dizendo que sua mulher o traiu e que ele agora quer ser matar. E/ou a briga com uma religiosa sobre colocar uma bomba dentro do lugar. E/ou o discurso de classe entre a relação dos empregados e o salário baixo pago pelos ricos. E/ou o anão gay cego e/ou o pai machista e dominador.
Esse imediatismo impulsivo, maniqueísta e criativo produz o sensação do não naturalismo. Enxergamos a ideia, mas não a sentimos emocionalmente. Mesmo com a informação posterior de uma surpresa-reviravolta na trama. Contudo, quando menos se espera o espectador recebe um sofro de realismo: a conversa entre os irmãos mantém o tom espirituoso, sagaz e super naturalista. “Marte Um” tinha dois caminhos e escolheu o roteiro mais óbvio, mais fácil, mais didático (nos diálogos, nas ações e nas reações) e que ficasse de bem com o público e com o próprio Brasil.
“O filme foi produzido graças a um fundo público de 2016 voltado para diretores negros e narrativas de temática negra com o intuito de levar às telas cineastas de grupos minoritários. Obviamente, esse fundo não existe mais. Rodamos o longa em outubro de 2018, durante as eleições, o que acabou influenciando também a narrativa. Não tínhamos ideia do que viria depois.”, finaliza o produtor do filme, Thiago Macêdo Correia.