O Despertar das Formigas
Renascimentos invertidos
Por Fabricio Duque
A história das formigas pode oferecer uma semente condutora aos filmes, visto que aprenderemos que esses insetos possuem super força; não escutam, porque não possuem orelhas; são mais antigos que os dinossauros; não tem pulmões; e são extremamente organizados e metódicos em dar ordem ao caos. Seus formigueiros surgem no calor, época do acasalamento. É exatamente o que acontece com “O Despertar das Formigas”.
Dirigido pela costarriquenha Antonella Sudasassi, estreante na realização de um longa-metragem, “O Despertar das Formigas”, exibido no Festival de Berlim 2019, que venceu o prêmio da crítica e de filme ibero-americano no último Festival de Gramado, busca conduzir o espectador pela poesia da simplicidade, por uma inocência perdida ao adentrar na desestruturação comportamental, fisicamente ciática, de Isabel, uma típica e suburbana dona de casa, que acorda de um transe social, retroalimentado pelo mundo em que vive. É como se saísse do mito da Caverna de Platão e encontrasse um universo inteiro pela frente para desbravar e explorar. É a construção do caos, com suas fisgadas semeadoras de dúvidas e de questionamentos, gerando assim reações sintomáticas de desconfortos perante a convivência com seus próximos.
Isabel começa a perceber a própria natureza, plena e primitiva, entre abelhas e borboletas. O espectador é apresentado à metáfora desse ser agora incompatível socialmente que vive exclusivamente para sua família. Uma vida sem nenhum luxo e com dificuldades, que conta moedas para comprar uma lâmpada (a representação da luz artificial como proteção e medo do escuro) e que sobrevive com esporádicos bicos de concertar roupas. Todos ali, que respiram o mesmo ar, vivem a padronização da de vidas em comum, com suas tradições condicionadas co-dependentes de paz e tranquilidade (achando que o simples pensar diferente pode acarretar um terremoto apocalíptico.
Nós assistimos à sogra dominadora; ao marido que alimenta o machismo internalizado, um típico mimado que não sabe em que lugar sua mulher guarda os pratos; às filhas, ainda mais mimadas (e repetidoras do que internacionalizam dia após dia. Isabel é a definição da mulher bela, recatada e do lar, que aprendeu a não brigar pelos direitos e aceita calada os deveres conservadores de uma alienada e limitada estrutura família e que aceita a condição de objeto sexual e serva empregada. Tudo por ser mais fácil de engolir.
“O Despertar das Formigas” acorda os sentidos e as vontades de Isabel (quase uma atriz estreante – este é seu segundo filme), de uma vida engessada e nem um pouco silenciosa – por tensas missões diárias e protocolos moralistas (que só são destinados a ela, devido a sua vulnerabilidade), bem à moda referencial da personagem principal em “Ensaio Sobre a Cegueira”, romance fábula do escritor português José Saramago, que despertar emoções, desejos, sonhos e projeções reais. O processo daqui é uma mutação existencial. Ela nunca será mais como era. Aprende a revidar. Dizer basta e gritar quando precisa contra o patriarcado.
Sim, nós sentimos sua pressão. Quando sua sexualidade aflora. E/ou quando perde a literalidade do roteiro de como agir, por exemplo, cortar o cabelo das filhas. Mas ela deixa o seu, para conservar a força e corroborar a característica da rainha mãe das formigas, que é a de durar mais que qualquer um da família.
Como já foi dito, sua narrativa é conduzida pela simplicidade de ações e reações, desenhando e reverberando propositalmente gatilhos comuns existentes em quaisquer relação humana. Contudo, aqui, o tom é condescendente, necessitando de nossa cumplicidade a fim de entender e compactuar com a tradução mais frágil, ingênua e amadora. Nós captamos que é um conto/estudo de caso sobre a jornada-terapia de uma mulher (em maternidade compulsória) que descobre a força do agir e do querer por trás da permissividade. Contra os desmandos dos outros. A favor dos descansos (não ligando mais para o que seus “próximos” fofoqueiros irão comentar). Contra o adormecimento, um torpor social que perpetua mesmices em zonas de conforto de aparências, encontros dominicais na Igreja e felicidade falseada de hipocrisias.
Todo e qualquer filme desperta referências cinematográficas. “O Despertar das Formigas” não poderia ser diferente. Há um que de “Canastra Suja”, de Caio Soh, com “O Pântano”, de Lucrécia Martel. Sim, mas não muito. Porque, aqui, sua diretora, que também assume a função de roteirista, quer suavizar os dramas com toques caseiros de criação. É um filme novela, com seus núcleos e suas reviravoltas, antes pacificadas e agora rumo à batalha da dignidade de existir pelo existir.