Mostra Um Curta Por Dia - Mes 10 - abril 2024

O Crime é Meu

Empoderamento pelo crime

Por Pedro Sales

O Crime é Meu

François Ozon é, inegavelmente, um dos diretores mais prolíficos da atualidade, ocupa a mesma prateleira de Woody Allen e Hong Sang Soo – no que tange à frequência, nem tanto à qualidade das obras. O cineasta francês, como não poderia ser diferente, mantém sua sequência de lançamentos anuais com o novo filme “O Crime é Meu”. Em razão da extensa filmografia, Ozon naturalmente explorou diferentes gêneros ao longo dos anos: o thriller em “Swimming Pool” (2003), o drama erótico em “Jovem e Bela” (2013) ou o coming of age (drama de amadurecimento) LGBTQIA+ “Verão de 85” (2021). Em seu mais novo longa, o gênero cinematográfico em voga é a comédia. Aqui em uma perspectiva histórica, quase uma comédia de costumes, com tipos sociais bem delimitados. No entanto, como o título do filme já evidencia, não se trata apenas de uma simples comédia, há mistério e uma pitada de drama policial também.

Madeleine Verdier (Nadia Tereszkiewicz), uma atriz medíocre, e sua amiga Pauline Mauléon (Rebecca Marder), advogada sem clientes, vivem juntas em um pequeno apartamento em Paris. Com várias cobranças, inclusive do aluguel, ambas mal conseguem sobreviver. Tudo muda quando um produtor de teatro, com quem Madeleine teve uma reunião, morre. Ela passa, então, a ser a principal suspeita do crime. Contudo o julgamento pode trazer uma nova vida de sucesso para ambas após uma eventual absolvição. Dessa forma, o longa se centra nessas duas personagens e em como lidam com o crime. Pode-se dizer até que se trata de um whodunnit (recurso narrativo em que a trama se desenrola na investigação para descobrir quem é o assassino, como nos livros de Agatha Christie, por exemplo) às avessas. Neste filme, descobrir quem é o assassino não é tão importante quanto reivindicar a autoria do crime. Assim, subverte-se esse estilo narrativo já consolidado, e o verdadeiro mistério surge quando outra pessoa, a atriz decadente Odette Chaumette (Isabelle Huppert), quer se declarar como culpada.

A direção de François Ozon transita bem pelos gêneros, mas se mantém fiel à carga cômica. O humor de “O Crime é Meu” advém muito da ironia, de arquétipos e situações absurdas. O texto é afiado, com piadas simples, mas efetivas, como ofender alguém sem saber que está falando com a própria pessoa. A questão da comédia de costumes, por sua vez, surge quando há a exploração de arquétipos e tipos sociais. O delegado é um bobo incompetente. A atriz decadente, vingativa e elegante. Então, passa a ser uma crítica à sociedade da época, personagens como símbolos e não tanto como indivíduos. Existe também um claro contraponto entre classes, o qual fica mais evidente quando atriz e advogada ascendem socialmente. O absurdo, citado anteriormente, é constante no longa e nele reside quase todo o desenrolar da trama – e humor também. O julgamento propõe empoderamento pelo crime, a legítima defesa é da honra e virtualmente dos direitos das mulheres, o que motiva mais mulheres a se manifestarem por meio de contravenções. O discurso feminista de Pauline no tribunal também lida diretamente com a bússola moral desmagnetizada e anacrônica do júri e da opinião pública, muito mais próxima da atualidade do que da Paris dos anos 30. Portanto, muito da potência do longa reside nessa aproximação com o presente.

Além da comédia e do caráter policial, o filme também é marcadamente teatral. Isso se dá, inclusive, por ser uma livre adaptação da peça homônima escrita por George Berr, em 1934. Ou seja, os espaços cênicos se tornam bem demarcados, como se houvesse uma inscrição no roteiro “Ato 1 – Apartamento”, e assim por diante. Nesse sentido, os poucos cenários permitem design de produção e caracterização extremamente cuidadosos e eficientes em recriarem a Paris dos anos 30, como a noite parisiense bem iluminada e filmada com uma cuidadosa panorâmica, e com ruas tomadas de gente. Apenas uma cena destoa disso, devido ao uso de um CGI pouco convincente que pode tirar o espectador da “ilusão” proposta em tela. O teatral também se materializa na encenação. Quando o filme se encaminha quase para um drama de corte, Ozon brinca com a metalinguagem – a ré é atriz – e os diálogos se tornam emotivos, melodramáticos, quase recitados. É como se no tribunal, a dupla Madeleine e Pauline fosse impelida a interpretar seus papéis: ser atriz, mesmo sob juramento, e ser advogada. O metalinguístico também se apresenta nos flashbacks que são filmados como cenas do cinema silencioso, em preto e branco e com proporção de tela diferente.

O Crime é Meu” é uma obra que funde diferentes gêneros. É policial, é drama de corte, mas, principalmente, comédia. A própria trama já é interessante por si só: assumir um crime e tentar ganhar algo com o julgamento, afinal não se tem mais nada a perder. François Ozon mantém o interesse do público ao longo da rodagem por meio dos novos conflitos  que surgem e colocam Madeleine e Pauline em posição desconfortável. O humor das personagens interpretadas por Tereszkiewicz e Marder, nesse sentido, também é basilar para tal. Uma vez que, para as duas, tudo se torna um golpe, um ato e uma peça, mas com uma pequena tensão sexual latente entre elas. A enganação, portanto, é fundamental para o sucesso. O filme também cresce bastante com a presença de Isabelle Huppert, a qual está sempre bem em cena, quase roubando para si os holofotes. Por fim, é interessante como a obra avança do mero divertimento, humor crítico e um pouco de mistério para um comentário, ainda que simplificado, em favor da causa das mulheres, um triunfo da sororidade. “A união faz a força”, como diz o ditado.

3 Nota do Crítico 5 1

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