O Compromisso de Hasan
Paisagens que se modificam
Por Vitor Velloso
Durante a Mostra de SP 2021
“O Compromisso de Hasan”, de Semih Kaplanoğlu, chega com particular atraso à imprensa depois dos problemas envolvendo as legendas durante a projeção. Uma espécie de tratado sobre memórias, honra, dignidade e compromissos, o longa conta a história de Hasan (Umut Karadağ) que procura manter a ordem na fazenda enquanto uma série de eventos ameaçam sua estabilidade. A tentativa de colocar uma torre em sua terra, é apenas o primeiro golpe sofrido pelo protagonista, que se vê obrigado a negociar com o Estado a realocação da estrutura.
Existe aqui um jogo de tradições que não se apega na exaustiva relação com o saudosismo das memórias e do passado, mas sim de uma resistência contra essa política de retirada de liberdade quanto ao mercado internacional. Hasan vê seu sustento ameaçado não apenas pela pressão da negociação da terra para a torre, mas bancos e outras figuras privadas ameaçando seus planos de poder realizar uma peregrinação com a esposa, sua estabilidade e de outros fazendeiros ao redor. É uma obra que investe na representação do cotidiano a fim de expor como esse modelo econômico vai minando o indivíduo até que haja a dissolução do livre arbítrio. Neste caminho, a interiorização de seus sentimentos e as memórias vão ganhando forma em uma história onde o tempo se dilata no prosaico. “O Compromisso de Hasan” não é um filme com grandes dinâmicas ou conflitos dramáticos, pelo contrário, é uma contemplação da moral de um homem que quer se manter de pé, enquanto suas memórias revelam as chagas do passado.
Os traumas são explícitos e a direção de Semih Kaplanoğlu é precisa em construir as imagens a partir de uma relação dúbia entre seus movimentos, significações e símbolos. Os primeiros minutos são particularmente líricos neste sentido, com a introdução do universo de Hasan através de passagens temporais marcadas por enquadramentos e cortes certeiros. Durante a projeção, esse tom se fortalece na medida em que reconhece nos espaços de sua encenação, os recantos históricos que formaram o protagonista. Desde a árvore que se eleva em meio à paisagem como uma fixação fantasmagórica, quanto os planos que não somos capazes de ver, as aspirações que não se cumprem da maneira esperada ou a decadência da região diante da invasão do Estado em conluio com empresas e figurões. Essa costura funciona bem no ritmo lento, já que é uma obra que trabalha a partir das ausências na imagem, ainda que saiba utilizar sua força em um impacto imediato.
Mas os belos planos não surgem de maneira inócua, são ampliados à cadência da paciência particular, do subjetivo e do material caminhando em mão única. Uma espécie de ambiente isolado da sociedade que tememos. Alguns diálogos nos ajudam na compreensão dessas distâncias e da geografia que o cerca. Não é o suficiente para impedir as quedas de ritmo de “O Compromisso de Hasan” em sua longa jornada de quase duas horas e meia, que vão se arrastando em uma experiência sólida, exaustiva e sempre com uma beleza consciente. Nada está fora do lugar ou com grandes excessos, porém as decisões estéticas e narrativas possuem o revés do adiamento de traumas que parecem cada vez mais distantes da história. Os últimos minutos de projeção são essa reconciliação com o passado e com a instituição que Hasan defende com tanto vigor, mas parece ter perdido de vista parte de suas prioridades.
Não deixa de ser um retrato das mudanças de um país que foi se aproximando do mercado global e a alta do dólar afeta sensivelmente o futuro de um casal que planeja na contramão dessa verticalização dos poderes. Inconscientemente ou não, é uma despedida catalítica de um modo de vida que vai se tornando obsoleto com as ofertas de antenas codificadas, cartão de crédito com juros baixos na intenção do consumo e burocracias incompreensíveis que dissolvem o universo de “O Compromisso de Hasan”, que se revela menos premonitório e mais melancólico a cada minuto que passa.