O Brutalista
Um filme que prefere se implodir no ainda que
Por Fabricio Duque
Festival de Veneza 2024
Um diretor de cinema é acima de tudo um construtor de imagens, responsável pelo tom e ritmo que dá a seu filme. Ao escolher as formas e as linhas dessa condução visual, a obra torna-se inevitavelmente um narrativo estudo arquitetônico. Essa geometria receptiva do que se vê quer mostrar essencialmente o conceito, causa e o porquê da ideia decidida, numa simulação desenhada pelo artifício do roteiro. Sim, parece que estou aqui apresentando o óbvio, mas é esse adjetivo que representa integralmente a tradução primal do mais recente filme, “O Brutalista”, do cineasta Brady Corbet (de “Vox Lux: O Preço da Fama”). Na realização de seu dois longas-metragens, o norteamericano, do Arizona, também ator (que inclusive foi protagonista de “Simon Assassino”), sempre quis imprimir um que mais visionário, e neste, em questão aqui, sobre um estilo da arquitetura e seu “maestro” geólogo australiano nascido na Hungria, László Toth (vivido pelo ator Adrien Brody, que “importa” muita coisa de “O Pianista”), o trabalho então é redobrado, para que se possa assim transpassar a metáfora, a personificação e o simbolismo, bases da construção cênica desse filme.
“O Brutalista” busca mesmo ser uma experiência visual, de imersão na concretude característica do Brutalismo, estilo da arquitetura que retira os excessos ornamentados do olhar para assim criar a percepção mais básica e mais minimalista das sensações. Aqui, não há extravagância e cores vivas, e sim a intenção máxima da simplicidade, que com o menos, ganha mais elegância. Neste filme, a construção da mise-en-scène usa todos os elementos característicos dessa estética “ousada” e sem suavizações, como o som metálico (de concreto sendo cortado em obras) e a fotografia dura e crua (estilizada à saturação contrastada de uma cor mais neutra e mais referenciada no tom amadeirado e escuro – sem espaço para “cortinas vermelhas”). Tudo aqui quer nos ambientar fielmente ao Brutalismo. Talvez isso explique a parte da interpretação de seus atores mais teatralizada, mais encenada, mais distante das emoções, em diálogos técnicos com muita informação sendo dita rápida e bruta demais.
Mas ainda que Corbet tente ensaiar uma condução mais visionária, explorando experiências visuais, como ângulos de uma câmera direta e próxima, ora subjetiva, e que querem nos integrar ao filme (o exemplo mais explícito é a Estátua da Liberdade de cabeça para baixo – sugerindo o “mundo ao avesso” dos imigrantes esperançosos que chegam a América, a “terra das oportunidades” e especificamente Nova Iorque – e a “falta de charme” – e/ou a principal delas: os créditos de abertura em linhas horizontais e por blocos), e/ou a música que soa a de um épico de efeito,“O Brutalista” não consegue fugir de seu próprio brutalismo criado. Sim, ainda que a alma da personagem principal seja propositalmente livre de interpretações, entre o amor “deixado para trás”, um felação não “produtiva” com uma prostituta empática (talvez pelo “tamanho da testa dela”), insinuações a desejos “possíveis” de “brotheragem”, a um “estupro” (talvez por “competição”, “frustração” e/ou “vingança”), o fato é que esta obra termina como uma incógnita. De não sabermos qual o verdadeiro propósito do rumo que o roteiro, escrito pelo diretor junto com Mona Fastvold, pensou atingir. O que incomoda não é a opção por deixar o filme solto demais, não, e sim nos manipular pela maneira de projeção amadora (e ingênua) revestida de uma possibilidade de arte brutalista.
“O Brutalista” tinha tudo para ser uma crítica ferrenha às novas políticas do governo de Donald Trump sobre a taxação internacional do aço (“resistente e barato”). Ainda que o filme nos direcione por esse caminho, quando mostra por imagens de arquivo e por matérias jornalísticas da época de que toda a América foi feito pelo concreto (o “progresso norteamericano”), e nada contra também escolher o viés mais pessoal a fim de contar a história do arquiteto László Toth e suas obras “tendência” e em “movimento” do novo (focando também em sua dependência química e em sua obsessão-loucura enquanto trabalha nos projetos), mas que foram tão hostilizadas no início por ir contra às “regras conservadoras” (que inclusive dá um “tapinha” na traseira de um carro como se fosse uma “matrimonial tradição carinhosa”) com “cara de mostruário”, ainda assim o filme prefere a superficialidade do tema, numa zona de conforto, quase preguiçosa, em apenas cumprir os protocolos e necessidades de se fazer terminar a obra. “O Brutalista” é sim uma tentativa ode a esse estilo da arquitetura dos anos cinquenta aos setenta, pela captação de uma imagem desgastada como aços enferrujados por tempos expostos aos efeitos ambientais do tempo. Mas talvez se quebre totalmente quando deseja o tudo, esquecendo-se de que o menos é mais. E que nem as três horas e trinta e seus minutos do filme (que quer ser um Martin Scorsese sem “brutalidade”) podem resumir toda a vida e obra desse artista.
“O Brutalista” é a fábula do novo, enquanto não finalizado. Tudo aqui participa do momento da projeção do sonho excêntrico e impossível. Por exemplo, a cena de suspensão do tempo na metafísica da contemplação do resultado final da biblioteca (um “projeto ambicioso”) é uma das mais sensoriais da história do cinema. Mas será que algumas maestrias visuais seguram o filme? O longa-metragem é dividido em quatro partes e com intervalo de quinze minutos em todas as sessões. O preâmbulo; a primeira parte “o enigma da chegada” (que gera os deveres da adaptação: a língua, o novo nome, a nova religião, a fome, a brutalidade de “perder o comportamento humano” e uma “combinação de coisas”); a parte dois (após o intervalo) “o núcleo duro da beleza” (chegada de novas personagens). E sua parte final, o epílogo, que vai para 1980, na primeira bienal de arquitetura, para concluir vida e obra (já aceita e famosa) de László Toth, em um discurso homenagem. É também um filme pró-Israel, que lista os maus-tratos aos judeus, independente de serem gênios ou não em seus departamentos, e que ensaia a ideia de que toda a América foi construída por imigrantes (que “os tolera”), em busca de “repatriação” e de um lugar para chamar de seu.
Em certo momento, o próprio filme parece desistir dele mesmo. Parece querer implodir seus “alicerces”. Fica abobado demais, apressado demais, afoito demais, melodramático demais, solto demais, perdido demais, bagunçado demais, facilitado demais, infantil demais. Cada vez as interpretações buscam o teatro anti-naturalista (quase beirando o brega), soando forçadas, didáticas e tecnicamente robóticas. “Italianos, a escória da Europa”, diz-se não sendo só ofensivo (com objetivo de fazer graça), mas egoísta e explicitamente xenófobo, e não deixa de lado nem os judeus (“vagabundos” e “sanguessugas da sociedade”). Só que “O Brutalista” nunca perde seu visual estético, preciso e de luz incidental cirúrgica. Como perguntei retoricamente anteriormente: será que a técnica excessiva, de máximo pragmatismo, que esquece o elemento humano, consegue nossa a sustentação de nossa atenção? Até mesmo a apresentação do Jazz é sem interação e emoção algumas. Pois é, confesso que vejo muito de “Megalópolis”, de Francis Ford Coppola, aqui.
Sim, como disse também: nem tudo aqui é descartável. Além da cena da biblioteca, o filme adentra numa captação noir, altamente brutalista, para mergulhar nos destrutivos e vulneráveis efeitos submundos da droga entre doses. Mas de novo? Só isso sustenta o filme todo? “A América é podre”, grita-se. É, pois é, apenas cenas. E após, voltamos com a “preguiça” da condução. É ladeira abaixo: confissões, surtos, catarses fora de tom, reviravoltas bobas. Talvez a grande questão de “O Brutalista”, que venceu Leão de Prata de Melhor Direção no Festival de Veneza de 2024, seja o ímpeto passional de quer tudo e assim atropela todas as sutilezas a possíveis atravessamentos mais maduros, articulados e naturalmente genuínos que esta obra poderia ser: brutalista sim, mas nunca sem impessoalidade. Uma curiosidade: Laszlo Toth vandalizou a estátua da “Pietà” de Michelangelo em 21 de maio de 1972 e foi imediatamente deportado para a Austrália. Nada disso o filme trata, por ser talvez uma “estranha homenagem”.