O Auto da Boa Mentira
Boa mentira em quatro faces
Por Vitor Velloso
“O Auto da Boa Mentira” de José Eduardo Belmonte é um projeto que despertou certa curiosidade no momento em que foi anunciado, por conta dos contos de Ariano Suassuna e pelo elenco recheado de famosos. Porém, seu propósito industrial, tomando de empréstimo o fascínio pela mentira do escritor, é um casamento pouco funcional. O espectador aguarda algo que consiga fazer uma costura melhor entre o arquivo de Suassuna discursando e a antologia cômica que é projetada, mas é frustrado por um longa que não consegue ir além do próprio conceito inicial, empacando em investidas frágeis de uma comédia arcaica. Cada bloco surge mais desconcertado que o outro, a proposta de direção segue algumas convenções dos espaços que enquadra, seja por seu gênero mais explícito (de acordo com quem os protagoniza) ou por utilizar paisagens como essa moldura do estereótipo.
Belmonte possui uma carreira relevante no mercado, na frente de produções que fizeram amplas cifras, “Alemão” e “Carcereiros” são exemplos disso, mas sua aventura por gêneros distintos da “ação”, “suspense” ou “crime” não é de agora e “Entre Indas e Vindas” é a síntese disso. Onde o cineasta conseguiu uma projeção que chamou a atenção da crítica, com “O Gorila” e “Se Nada Mais Der Certo”, ele parece ter perdido a verve para conduzir alguns produtos mais viáveis e programáticos. “O Auto da Boa Mentira” é mais um passo em falso.
O filme propõe-se a comédia e pouco consegue fazer rir, sendo eufemista, possui uma linha quase industrial com recortes reciclados de clichês do gênero e o panteão de atores famosos não vai além da mera representação da história que é situada inicialmente. As coisas estão no automático, Belmonte aparece pouco criativo e as resoluções que encontra na forma faz com que tudo seja irrelevante no fim das contas, utilizando dispositivos ágeis para concretizar a comicidade desengonçada o barato mantém tudo em suspenso nesses gatilhos primários. Se em um primeiro momento existe a curiosidade de como o andamento dessa antologia irá funcionar, rapidamente o interesse se perde no primeiro trecho com Hassum, reaproveitando vídeos seus de outrora. É a tônica de “O Auto da Boa Mentira” um amontoado de reciclagens e clichês internos nas próprias interpretações, não à toa os estereótipos que marcaram a carreira de Belmonte, se mantém.
Se antes o espectador aguardava seu próximo lançamento para observar o que de novo, agora vai à sessão tateando nas cifras algo para se agarrar em meio ao cansaço provocado. Do “safari” provocado pelos gringos, não há nem ensaio de crítica diante da factualidade febril, apenas uma exposição que se apresenta para essa objetificação da paisagem que ocorre em mão dupla com a própria produção. Isso já acontecia em “Alemão”, mas parte da fórmula se repete, os traficantes das produções são Cauã Reymond e Jesuíta Barbosa, a paisagem urbana é um cartão postal emoldurado pela objetiva.
A mentira, objeto central aqui, é dada pelas construções que Suassuna faz, onde o longa interpreta suas literalidades com a preguiça de quem representa por uma identidade cultural em interpretações globais e uma espécie de conformismo diante da fórmula pavimentada ao longo dos anos, até os tempos que a montagem explora estão de acordo com o que o gênero estruturou nas bases comerciais de quem realiza a coprodução aqui.
O olhar lúdico que “O Auto da Boa Mentira” procura em pequenos causos, são retirados diretamente dessa ingenuidade presente nas histórias de Suassuna. O trecho de Cássia, Góes e Jackson é a parte funcional do longa, exatamente por uma concepção funcional que encontra aproximações diretas com o texto do autor. Por outro lado, o filme não consegue encontrar essa parcela lúdica-material diante de uma encenação que é construída entre a tristeza e a comédia.
O eixo final traça uma diferença de classe, onde o poder se desloca entre as mentiras e as repressões individuais, mas o recorte nunca consegue se desvencilhar de uma interpretação seccionada de ingenuidade, as explosões dramáticas não encontram as caricaturas que Ariano articulou e tudo parece estar direcionado à praticidade comercial que Belmonte vem desenvolvendo. Uma pena, com pouca surpresa envolvida.