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O Atalho

A opacidade do outro

Por João Lanari Bo

Festival de Veneza 2010

O Atalho

Imagine uma colaboração entre John Ford e Wallace Stevens e você poderá ter uma ideia do que Kelly Reichardt realizou em “O Atalho”: uma recriação sincera da experiência pioneira, trazida à tona por meio de detalhes cuidadosos e frequentemente inesperados. Foi dessa forma que um sagaz crítico americano iniciou sua leitura do belíssimo filme de Reichardt, “Meek’s Cutoff” no título original: Stephen Meek é um personagem histórico, caçador de peles e explorador experiente que ganhava a vida como guia de caravanas de pioneiros. Estava desempregado, mas tinha reputação de alguém que conhecia o leste do Oregon, destino do pequeno grupo de colonos que se aventuraram naqueles confins, em 1845, em busca da terra prometida. O poeta Stevens escreveu, em Of the Surface of Things:

No meu quarto, o mundo está além da minha compreensão;

Mas quando caminho vejo que consiste em três ou quatro

         colinas e uma nuvem.

Naquele tempo, a imensidão do noroeste americano era um território em vias de desterritorialização: a força da grana que ergue e destrói coisas belas foi a primeira a se apresentar, sob a forma de caçadores de peles – os ingleses tinham companhias no Canadá mapeando o país para possíveis postos de comércio de peles. Imperialismo em ação: foram os caçadores que abriram novas trilhas para o oeste, o velho oeste, atravessando desertos e esbarrando na multiperspectiva mítica dos indígenas. Na sequência, vieram os colonos-imigrantes com a Bíblia debaixo do braço em busca de terras para se estabelecer e procriar. Rumores circulavam que os índios Walla Walla e Cayuse poderiam atacar os colonos nas Montanhas Azuis do Oregon ou ao longo do rio Columbia: dois franceses aventureiros teriam sido assassinados nas redondezas da trilha do Oregon, a rota inicialmente contemplada. Meek propôs um caminho alternativo, um atalho para evitar as famosas Montanhas e driblar os perigos do desconhecido: foi contratado no ato. Mas a linha do horizonte, a linha que demarca o campo visual dos filmes de John Ford e alimenta o desejo de conquista, revela-se, sob olhar de Kelly Reichardt, uma falácia: não há água, só cascalhos e areia, não se veem as montanhas, só o deserto. O velho Meek vai perdendo a credibilidade, as tensões contornam perigosamente o ponto de ebulição – “O Atalho” é um loop minimalista, conduzido pela mão percuciente da diretora. Um filme baseado em acontecimentos reais, como nos letreiros cinematográficos, como na poesia de Wallace Stevens.

A árvore dourada é azul,

O cantor puxou o manto sobre a cabeça.

A lua está nas dobras da capa.

Entra em cena a alteridade opaca do índio, esse outro que olha e pensa: quem são esses seres, aparentados com os humanos? Os colonos se dividem: Meek enxerga um animal no outro indígena, Emily (atuação magistral de Michelle Williams) compartilha uma humanidade com o indígena, como se fora um xamã. O índio – vivido na tela pelo native american Rod Rondeaux, ator e dublê – fala no filme sua própria língua. Artista de espetáculos de rodeio, cavaleiro, domador de touros, steer wrestler e team roper, sua especialidade era perseguir bezerros, pular do cavalo e agarrar seus chifres, desequilibrando o animal e jogando-o no chão. Talvez, para ele, os outros o percebam como animal, espírito ou alguma modalidade de não-humano. Na narrativa de “O Atalho”, ele é o acorde dissonante que ameaça derrubar a tênue linha de força que sustenta a coesão do grupo. Uma coesão que remete, longinquamente, ao vocabulário codificado dos filmes de faroeste que habita corações e mentes dos espectadores ansiosos. John Wayne saindo pela porta e a câmera filmando de dentro o espaço que ele, protagonista masculino, prepara-se para adentrar.

Reichardt dedica-se a mostrar, ao contrário desse código entronizado por Hollywood, longos intervalos da rotina diária de viagens de seus personagens, sem que uma única linha de diálogo seja falada. Nada acontece e tudo acontece. “Esses planos permitem que você tenha tempo para pensar”, disse seu roteirista, Jon Raymond. A realidade é lenta, no velho Oeste: quando você está no deserto, corrobora a diretora, “você vê 40 milhas em todas as direções, e é muito difícil ser pego de surpresa por alguma coisa”. Não há confrontos, não há duelos ao sol: o que existe, no filme de Reichardt, é o espaço mítico inapreensível, mas real.

4 Nota do Crítico 5 1

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