O Agente Secreto

Entre vidas absurdas, sotaques atravessados, cargos comissionados e tubarões

Por Fabricio Duque

Assistido presencialmente no Festival de Cannes 2025

O Agente Secreto

Andar de bicicleta e moto na calçada de pedestres (esta calçada que também “vira” extensão de bares – com mesas e cadeiras – fazendo que se tenha que “contornar” pela rua); conversar e atender o telefone enquanto assiste filmes nos cinemas e peças de teatro; parar no lado esquerdo da escada rolante; avançar o sinal vermelho e fazer “bandalhas” no trânsito (para “economizar” segundos de tempo); “marcar” local nos aparelhos de ginástica em academias e em apresentações públicas sem lugares marcados; jogar lixo na rua (porque há o gari para limpar); colocar água no shampoo e no detergente de cozinha para usar até a última gota; “carregar” a pilha-bateria no congelador; “correr” como uma “guerra” para comprar produtos bem mais baratos em aniversários de supermercados; correr em “mode maratona” para sentar antes nos bancos do metrô e/ou trens; comer produtos nos supermercados antes de pagar; comprar carteira de estudante (para pagar meia entrada) e de direção de automóveis (para não fazer a prova); colocar bombril na antena para melhorar o sinal da televisão. Sim isso tudo que listei acima (e muito mais coisa) é Brasil, o país dos jeitinhos e das gambiarras.

E é esse Brasil que o diretor Kleber Mendonça Filho, desde  suas críticas e seus curtas-metragens, debruça seu cinema para assim construir suas narrativas. Este é um cinema de observação. De expor exotismos característicos (muito particulares) e culturais. Um cinema que o povo se identifica, mas que não quer ver na tela do cinema, talvez por não encontrar a fantasia do sonho projetado. KMF também “exuma” um cinema para gringo, porque esses estrangeiros são levados a possibilidades de explorar (e assistir) nosso próprio Brasil como “aliens” antropólogos, passivos, até porque talvez ninguém consiga mesmo mudar o “jeitinho” que construímos há mais de 500 anos, inclusive com a permissão de que o outro de fora sabe mais que a gente e por isso tem mais relevância no existir.

Sim, o cinema de Kleber Mendonça Filho é assim: seco, cru, direto, sem nuances e principalmente sem filtros, sem tatos sociais, é fisiológico na mensagem, subvertendo a constituição da estética e desferindo realidades pelo artifício da ficção que simula o documentário. Tudo com um que bem exposto de lente de aumento de um cotidiano muito absurdo pelo amadorismo editado e proposital do olhar. É, essencialmente, um cinema que busca descolonizar o próprio cinema brasileiro. E foi assim (confesso que demorei a captar todos esses insights) que comecei a entender mais a segunda fase do cinema de KMF, iniciado com “Bacurau”. Um cinema que violenta as opiniões contrárias de quem assiste, muito à moda de como Glauber Rocha fazia. Mas aqui a sua construção de “morreu na contramão atrapalhando o tráfego” (parafraseando Chico Buarque) se veste de muito deboche neorrealista, de cúmplice moralidade tóxica, de sotaque bairrista, de humor bem popular (até mesmo “old school”) e muito estilizado ao estrangeiro, ainda que extremamente brasileiro.

Talvez por isso tudo o grande “hype” por uma nova “experiência popular” de Kleber Mendonça Filho. A mais recente aconteceu de novo no Festival de Cannes deste ano. “O Agente Secreto” integrou a competição oficial a Palma de Ouro, apresentando na costa azul francesa um Brasil estranho e distante até para os brasileiros. Este é um filme que não acontece imediatamente, que não se “resolve” abruptamente na crítica, mas sim no refletir. No pensar calmo. Podemos até dizer que é um filme fluxo de pensamento (em processo). Parece não haver separação entre o tempo real da própria vida e o tempo da ficção. Há um descolamento espacial de personificação metafísica que quer nos “afrontar”. Sim, tudo aqui em “O Agente Secreto” é decomposto por uma presença invisível, acareado por uma iminência etérea, em tom auto-sobrevivente de “salve-se quem puder”. É como se KMF criasse uma sensação, conhecida dos brasileiros, da máxima de sempre esperar a tempestade e sempre esperar uma “cruel, punitiva e inconstitucional anistia”, porque tudo no Brasil é intenso e pode “mudar em 20 minutos”. Ao desconstruir o próprio filme enquanto o mesmo acontece, seu diretor joga na “nossa cara” o que nós realmente somos. E isso incomoda. Quem ele pensa que é para fazer isso?

“O Agente Secreto” traz todos esses embutidos para talvez assim “acordar nossos gigantes” e “ajudar” a não mais termos vergonha de sermos brasileiros, porque cada engrenagem popular, cada atalho, cada jeitinho, cada gambiarra, cada “pernada” no outro, cada caos que naturalizamos, cada coisa tem sua representação e representabilidade do final dos anos setenta, com samba, com corpos “orgânicos” (camisa aberta, purpurina, suor e “gorduras” – e até animais “extraordinários”), fusca amarelo, Cacrinha e uma “época cheia de pirraça”. Sim, o cinema de KMF tem cheiro. Um período “prévio” desse “acordar”, entre “meliantes que mereceram” morrer indigentes no meio do carnaval, “rodeado” de moscas e comentários em tom de fofoca casual-banal. Há aqui uma naturalização tóxico do que vemos (da polícia chegando de carro Brasília – com ofensiva e “pequenos poderes” – e recebendo “um cafezinho” para “fechar o olho”). Isso tudo é Brasil. Nós entendemos e queremos mudar. Já os gringos, preferem a curiosidade exótica. Devem pensar: “Cadê os macacos selvagens nas ruas?”. “O Agente Secreto” é um filme que acontece on the road. Em cenas. Numa estrada de terra e poeira, ainda não asfaltada e aguardando “civilização”, num que narrativo de passagens suspensas do tempo real, que até referencia os silêncios absurdos de Aki Kaurismaki. “É um bom estepe”, ironiza-se.

“O Agente Secreto” é também um filme de ditadura. De um “fantasma obsessor” que nunca nos abandona, infelizmente. Um filme sobre o “faroeste sem lei” do “conforto” nos signos tradicionais. Um pesadelo, entre pernas e tubarões. Tudo por uma fotografia nostálgica, mas de querer atemporal “vencido”; e por um Wagner Moura sem “vaidade” interpretativa, que se entrega pela falta e ausência da ação; e por um Gabriel Leone (o extremo oposto) em atender “missões” (num que de Quentin Tarantino). Cada coisa aqui no filme pode ser separada ou junta de acordo com a vontade do espectador, assim como suas percepções, mais livres e menos dogmáticas. Kleber também não abandona seus métodos criativos, talvez por ser crítico antes do cineasta, cinéfilo antes de realizador, inclusive montar zoom explícito bem Nouvelle Vague de ser, conversas e sons intercalados e ângulos nem um pouco ortodoxos. Eu demorei também a entender que os diálogos que KMF condensa, mais didáticos e diretos, entre frases de efeito, são na verdade uma crítica a nossa cognição. Nós repetimos para compreender. Não “pegamos no tranco” apenas com sutilezas articuladas e perspicazes. “Sotaque pernambucano não é muito católico”, debocha-se com verdade “sem papas na língua”. E complementa com o arquétipo político que só brasileiro entende “Eu sou cargo comissionado”.

Assim, “O Agente Secreto” é um filme sem tempo, num universo paralelo, que atravessa épocas, memórias subjetivas (e alteradas) do narrador que conta. É também uma obra que se explica pelos capítulos apresentados e que faz uma “transfusão de sangue” no Brasil e em seus brasileiros, numa mise-en-scène de cotidiano possível, entre “profecias” e novos “bacuraus”. Isso é o que conhecemos como “normal”: a cultura do erro aceitável pelos coloquiais comportamentos humanos que compõem nossa Pátria. Talvez, para finalizar, Kleber Mendonça Filho consiga definir de uma vez por todas o seu cinema quando disse na coletiva de imprensa em Cannes: “é a fronteira entre estar acordado e estar dormindo”.

4 Nota do Crítico 5 1

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