O Acontecimento
O Manifesto das 343 Vagabundas
Por Giulia Dela Pace
Festival de Veneza 2021
França, abril de 1971. Três anos após “O ano que não terminou”, Simone de Beauvoir, uma das escritoras e intelectuais feministas mais influentes até o presente momento, redige o texto do Manifeste des 343 (Manifesto das 343), também conhecido por “Manifesto das 343 vagabundas”, um nome certamente bem mais apropriado. O documento foi assinado por 343 mulheres francesas que admitiram terem realizado abortos, mesmo que ainda fosse crime à época e estivessem sujeitas a responder processo criminal, já que o aborto era ilegal na França – assim como no Brasil atualmente – até 1975. “O Acontecimento” de Audrey Diwan é um filme de vagabundas, para vagabundas. Ele não faz questão de dramas e floreios em diálogos, mas firmemente se mostra um filme seco que despe completamente uma situação perversa em seus mínimos detalhes.
O longa é o perfeito retrato de seu livro homônimo e autobiográfico. A autora Annie Ernaux, escritora e acadêmica francesa que relata a história do aborto de uma gravidez indesejada quando ainda era estudante de letras em Rouen na década de 1960 e como enfrentou sozinha todo o processo. De forma limpa e direta é isso o que vemos na tela, desde seu formato – 4:3, proporção de tela – que recorta para o(a) espectador(a) apenas Anne (Anamaria Vartolomei), e sua opressora solidão em busca da interrupção de uma doença que afeta apenas pessoas portadoras de útero, suas mudanças de cores que extrapolam os sentimentos e sintomas intensos da protagonista.
Anamaria Vartolomei tem papel importantíssimo na experiência do filme, pois transbordou intensa conexão com a história e consciência de Ernaux. Uma atuação que sobeja veracidade e empatia, tal qual a autora viu em sua própria história o “acontecimento” de tantas outras mulheres que arriscam a vida nos procedimentos clandestinos em países onde as instituições governamentais e religiosas não permitem que elas possam legislar sobre os próprios corpos. “O Acontecimento” é um necessário recorte subjetivo que extrapola para representações coletivas.
Cineasta francesa de origem libanesa e ativista da Collectif 50/50 – ONG que busca promover igualdade entre homens e mulheres na indústria cinematográfica – Audrey Diwan levou o Leão de Ouro do Festival de Veneza com “O Acontecimento” e entrou para a lista das únicas cinco mulheres a receber o prêmio até hoje. Claramente engajada na participação igualitária de mulheres no cinema, Diwan deixa explícito com o resultado de seu filme o quanto a ocupação de mulheres conscientes das questões de gênero em cargos hierarquicamente superiores nessas produções faz completa diferença na mensagem final do produto.
“Unpregnant”, “Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre” e “Lingui, The Sacred Bonds” podem ser superficialmente classificados como filmes “muito importantes” sobre a temática do aborto – especialmente para os espectadores e os críticos. E realmente todos são, mas cada um carrega sua peculiaridade geográfica, cultural, temporal, legal e complexas construções de personagens femininas tentando lidar com a falta de liberdade, uma necessidade básica de existência. Além disso, a obra de Audrey Diwan tem algo de muito especial: sua concretude fílmica sem uma brecha sequer para questionar o posicionamento tanto da diretora, quanto do filme e seus personagens verossímeis.
Tão plausíveis que eles a abandonam e abusam em inúmeros momentos e por diversos motivos, mas o maior deles é sempre a sobreposição do medo de ser punido pela lei, o que encobre os reais motivos da falta de apoio que dão à Anne: a impunidade da paternidade e indiferença quanto aos desafios de uma mulher ao desistir da vida por uma gravidez. Todos muito bem pautados em crenças e culturas de utilização do corpo feminino como maquinário de prazer e reprodutivo, mas não como produtor de conteúdo intelectual e portador de vontades próprias. E apesar da história ser sobre Anne, as amigas que a acompanham também são bem desenvolvidas tanto por sua não participação e desvontade em aproximar-se da protagonista ao saber do aborto quanto da rivalidade feminina. Elementos que expõem a não romantização do cenário de rede de apoio feminina formada por uma sororidade incontestável que geralmente é vista em filmes hollywoodianos. Aqui há a complexa realidade de ser mulher, não a fantasia “twitteira” onde até mesmo o apoio feminino generalizado é de fácil solução – tendo em vista que redes sociais, como o Twitter, tendem a se tornar palanque para muitas mensagens “bonitas” de sororidade e poucas aplicações práticas dessas falas.
A simplificação da mulher como dona de casa, entretenimento, corpo e complexidade psicológica não se limita à produção dos filmes, mas em como assisti-los depois. “O Acontecimento” é um filme que deve ser assistido como vagabunda sendo ou tentando ser uma como Annie Ernaux. Especialmente diante dos recentes eventos nacionais e internacionais de violência obstétrica, estupro e revogação de leis que garantiam direitos, a obra veio em boa hora para que os(as) espectadores(as) possam experienciar o longa e sentir em carne viva perfurações não esterilizadas do que é a situação de uma mulher com seus direitos violados em tantas esferas e sem qualquer tipo de apoio.