Lingui, The Sacred Bonds
Do indivíduo ao coletivo
Por Ciro Araujo
Festival de Cannes 2021
“Lingui: The Sacred Bonds”, de Mahamat Saleh Haroun, é um daqueles filmes que possui um impacto social-histórico ousado. Se explica pela posição geográfica de suas locações: Chade, um país africano encravado (sem costa marítima), nome originário do lago que se situa dentro do território. Um local que quando analisado sob a ótica cinematográfica, percebe-se uma grande lacuna de produções. De fato, as múltiplas guerras e ascensões ao poder sob diversas juntas militares explicam esse buraco, só interrompido em 1999, pela produção também de Mahamat, “Bye Bye Africa”. A questão maior que é então apresentada é em relação à um país que não possui memória alguma cinematográfica produzir um longa-metragem tão sensível e escancarar pulsão visual delicada.
Apresentando texturas, o longa de Mahamat é definido pelas paisagens desérticas do país. Não é difícil de ter como primeiro comentário os elogios certeiros de uma fotografia marcante, cujos detalhes artísticos vão desde representações da cor da bandeira chadiana como as roupas leves marcantes. Dentro de uma história sobre dores femininas e solidariedade, a insistência para traduzir ainda em uma formação territorial chega a ser importante. Existe um impacto em um filme que é exibido em Cannes, para uma crítica já experiente e que respeita apenas o cânone. Claro, parcialmente falado em francês, o que não chega a ser uma novidade, mas ainda assim a força artística é necessária.
Se existe o apontar estético, não há de se esquecer o texto que Mahamat Saleh Haroun escreve. E como escreve. Intercalando entre o francês e a variante árabe de Chade, o sujeito escrito surpreende, uma vez que existe a noção de alteridade diante de visões e espaços femininos. A hierarquia pré-definida da religião, um espaço de opressão diante da própria questão de liderança, enquanto a limitação do controle do corpo, terceirizada, uma ferramenta para outros. A sociedade tradicional que acredita fielmente em valores conservadores, mas que atua pelas sombras de forma totalmente antagônica. Assim, os valores introduzidos aqui são universais, ideais tanto ocidentais quanto orientais, mas que quando observado sob uma ótica além do mercado consolidado de cinema, formam um interessante mecanismo de empatia. Inclusive agem como educação em detrimento da estrutura de poder criada em um país de variedade étnica e religiosa absurda.
A singularidade de “Lingui: The Sacred Bonds” transforma o que, inicialmente, é um filme sobre dores, em uma mensagem (inclusive óbvia) a respeito de solidariedade; o tangível existe até o limite para ter suas funcionalidades sob a ideia de empatia e correlações humanas. A condição humana, se permite, no que é adaptação para o female gaze, isto é, ótica vista por mulheres – mesmo que assim seja feito por um cineasta homem, o que surpreende tamanha delicadeza sensorial para o nível do longa-metragem. O drama americano de Eliza Hittman, “Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre” possui uma natureza também comparável. É estranho como a obra estadunidense chegue a se comparar, comprovando uma universalidade no texto de Mahamat. Ainda assim, um contraste puro, entre alguém proveniente do mundo ocidental desenvolvido e de um país pobre em um continente massacrado historicamente. Ambos sofrem de pressões religiosas, o tabu enxergado do aborto, o masculino que machuca ou é sempre enxergado como uma ameaça. Temas universais, uma demonstração da sociedade do falo, o masculino como central. Apesar de todos os paralelos, no filme chadiano há mais além, uma verdadeira revolta contra o sistema, uma imagem de violência simples contra o homem, mas que possui a dose correta de raiva, vingança, ressentimento e mais.
Resistir à violência; se, diante da generalização, o cineasta de Chade encontra ouro, é por questão de sentido. O “eu” agora é ouvido, possui ao menos voz ou um caminho para voz, seja por redes sociais ou por algum outro meio. Apesar da distorção sobre democracia virtual, é possível sim extrair a força de fazer algo. Mahamat compreende, pois entrega as armas para a jornada que antes parecia de sugar dores. É mais, uma resiliência que independente do sentido da palavra já tornada genérica. E para uma direção ser congruente com algo certeiro, precisa ser direta e honesta. Nada além das câmeras, nada além de formas linguísticas óbvias e singelas. É tudo que um país que no meio da África já recebeu tanta pressão precisa, de uma destilação de empatia humana através da desgraça. Mesmo que seja sobre um indivíduo, “Lingui: The Sacred Bonds” trabalha para um coletivo.