De Volta para o Futuro do Pretérito
Por Filippo Pitanga
Durante o Festival Cine Ceará 2019
Sabem aquela brincadeira de criança em que escondemos uma “cápsula do tempo” enterrada num lugar preservado e só escavamos de volta uns 10 anos depois, para ver se os objetos pessoais que escondemos ali continuam a significar a mesma coisa ou mudaram de valor? É um bonito exercício sobre o dissabor de se amadurecer e enfrentar as adversidades imprevisíveis do tempo em nosso olhar perante o mundo. Pois imagine fazer essa dinâmica agora com um filme. Imagine filmar algo 10 anos atrás… Só que ao invés de estar “enterrado”, estaria plantado na Terra, enraizado, “escondido” bem sob o nariz de todos. E, assim como uma esponja, estaria absorvendo tudo o que acontece ao redor e se ressignificando simultaneamente às novas ordens mundiais de forma crítica, sempre crítica. Apenas 10 anos depois esta cápsula iria poder ser mostrada para o mundo. O que ela mostraria? O que teria mudado?
Foi mais ou menos isto que aconteceu com a obra atemporal e paradigmática do mestre cineasta cearense Rosemberg Cariry, irônica e justificadamente denominada “Notícias do Fim do Mundo”, ou seja, notícias pregressas que agora vêm à tona de forma extremamente atual e vanguardista. Uma fusão entre ficção (a parte encenada e filmada 10 anos atrás) e documentário (com inúmeros segmentos reais acrescentados e doados por muitos colaboradores numa grande família cinematográfica), e que mistura teatro com uma edição moderna e ágil digna da linguagem contemporânea do youtube ou dos stories no Instagram. Um cineasta clássico e elegante que cita de Shakespeare a Brecht e cordel do cangaço, ao Cinema Novo de Glauber e até o Cinema Marginal de Sganzerla e Helena Ignez, até desembocar no código frenético de programas jornalísticos extremamente violentos como “Brasil Urgente” – porém muito mais como denúncia desconstrutiva desta abordagem execucionista do que para reforçar seus estereótipos.
O resultado é um circo dos horrores que Rosemberg previu 10 anos atrás que estaríamos vivendo hoje. E esta é a maravilha do cinema: sentir a força do tempo afetar suas influências nas camadas mais profundas de uma obra de tal modo a fazer o mesmo filme virar uma nova experiência a cada geração. O quão fortuito pode ser uma trama em que um grupo de artistas mambembes, ao se apresentar perante solenidade de um governo fictício (Jenipapuaçu, vulgo Brasil), acabe sequestrando um embaixador (João Paulo Soares) de certa potência estrangeira identificada como “Golem” (alguém pensou nos EUA…?) e exigindo em troca a liberdade democrática de volta para toda a diversidade de sua nação?! Inclusive para as comunidades indígenas e quilombolas, em geral esquecidas nas demandas a chegar até as grandes mídias, mas que aqui ocupam primeiríssimo lugar pela faceta antropológica e humanista dos trabalhos de Rosemberg.
Por incrível que pareça, se tivéssemos falado sobre a possibilidade de um artista sequestrar um embaixador estrangeiro há 10 anos, lembraríamos de “O Que é Isso, Companheiro?”, cuja história é situada no meio da Ditadura do Golpe Militar de 1964… Mas aqui estamos falando de artistas no tempo presente, no agora, justo num ano em que a Ancine (Agência Nacional do Cinema) está sendo alvo de tentativas de desmantelamento e desmanche por parte do governo atual. Apenas à luz do hoje é que podemos sentir a força artística de uma obra de ficção conseguir purgar através da catarse o que os artistas não andam podendo fazer fisicamente ante os ataques de censura e cortes como anda acontecendo. Torna-se plausível para o espectador sentir pelo menos a possibilidade de a arte sublimar a dor e dar o alívio do revide para a alma – como uma terapia catalisadora que realiza na tela para atrair soluções alternativas à vida real.
O revide chega em forma dos heróis do sertão, da história brasileira extremamente atrelada ao cangaço, dentro e fora do cinema, onde o “banditismo” não era a milícia de hoje, e sim formas fora da lei de contestação e insubordinação a regras que não foram feitas para você. Milícia, diferentemente, é uma força financiada por instituições ou mesmo pelo governo. Cangaceiros estavam muito mais para justiceiros com as próprias mãos à la Robin Hood do que para uma força organizada e militarizada de mercenários sem índole ou moral, que apenas fazem qualquer coisa a quem pagar mais alto. E tanto o cangaço quanto seus heróis rebeldes, como Lampião, Maria Bonita, Corisco e Dadá fazem parte do eterno retorno não apenas dos estudos de Rosemberg Cariry, como de sua filmografia. E parece que o resgate destes personagens de luta e resistência andam mais em voga do que nunca: como também no outro filme mais falado do momento, “Bacurau” de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, com seu personagem Lunga (Silvero Pereira), que é uma encarnação moderna e queer, não binária e de potência fluida a representar o equilíbrio entre o feminino e o masculino perfeitamente.
Rosemberg também reforça o levante popular do revide que estes filmes andam nos proporcionando, e tangencia esta contemporaneidade não binária também, como com um Rei (Everaldo Pontes) e uma Rainha (Majô de Castro) da poesia declamada a governar de forma horizontal no palco. Assim como seus “soldados” artísticos armados de paetês e lantejoulas num figurino caprichado também se amam uns aos outros e ameaçam o embaixador sequestrado com beijos na boca – um símbolo de que o amor pode ser a munição mais subversiva de todas! Acrescentando o valor extra de se poder ver os artistas preservados como numa esquife de gelo, pois o elenco com tantos nomes consagrados vão poder ser vistos no cinema como num espelho invertido, em obras recentes um pouco mais velhos, e neste retorno ao passado, rejuvenescidos.
Algo muito fortuito especialmente para os já citados Everaldo e Majô, ambos muito recorrentes na filmografia da família Cariry, tanto de Rosemberg quanto do filho Petrus ou de outros parceiros cinematográficos, e que ora podem ganhar novas simbologias etéreas e místicas: como no caso de Everaldo Pontes, que cumula personagens entre o sacro e o profano, o espiritual e o carnal, e agora recebe este presente metafísico para os fãs desembrulharem e ressignificarem o corpo de sua obra além da matéria (“Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois”; “Batguano”; “Os Pobres Diabos”; ou mesmo “Abaixo a Gravidade” de Edgard Navarro, outro filme lançado quase uma década depois).
Assim também é a linguagem do filme, uma subversão artística como pólvora incandescente para derreter os grilhões históricos, fruto do colonialismo que sofremos até hoje. Uma síndrome de subalternidade sob o punho capitalista de potências estrangeiras, sem valorizar o que é nosso e que faz frente e até supera qualquer coisa que possa vir de fora – exatamente por ser nosso e nos dizer respeito. A parte teatral com os artistas mambembes a sequestrar o embaixador para dentro de um ônibus nômade e itinerante ornado como uma nave espacial foi a parte filmada há 10 anos…, enquanto que os vários cortes e interlúdios mais do que reais, com imagens de noticiários, ou de documentários e outros filmes foram sendo inseridas e acrescentadas ao longo dos anos…
Outra parte importante é a parte do longa que se passa intermitentemente numa rádio clandestina do lado dos rebeldes, algo parecendo a antiga “TV Pirata”, porém mais atual, que consegue hackear o sinal das grandes emissoras e gerar interferências nas notícias colonizadoras… Algo muito necessário hoje em dia diante das manipulações das mídias pelo governo – algo que de fato representasse o povo e conseguisse se infiltrar no sistema para mostrar a verdadeira face das notícias.
E o curioso é que, ao começar a fazer isto na década passada, Rosemberg conseguiu se adiantar e ao mesmo tempo perpassar inúmeros movimentos atuais, ainda que o lançamento de seu filme tardiamente faça parecer que eles estaria vindo depois de algumas destas mesmas novidades. Alguns exemplos são o futurismo distópico de sci-fi como os filmes de Adirley Queirós, principalmente “Era Uma Vez em Brasília” e “Branco Sai, Preto Fica” – este último, então, possui muito sobre alienígenas, viagem no tempo e rádio pirata… Não a dizer quem veio primeiro e quem veio depois, uma vez que todos agregam em suas próprias searas, até porque há exemplares muito anteriores com esta linguagem radiofônica com anti-heróis insurgentes, como a marginalidade e óvnis de “O Bandido da Luz Vermelha” de Rogerio Sganzerla ao feminismo interseccional de “Born In Flames” de Lizzie Borden, possíveis influências aqui também reunidas.
Para além da técnica de montagem do próprio Rosemberg, numa verdadeira família de cinema, algo raro atualmente, onde um cineasta educa seus filhos com a sétima arte e que passam a reproduzir e dirigir esta poderosa ferramenta de educação. A coisa toda é costurada pela fotografia de seu filho Petrus Cariry, que mesmo tantos anos atrás já demonstrava o valor que alcançaria como um dos melhores fotógrafos neste milênio, em contrastes como os planos fechados dentro do helicóptero com grande angular ou os planos abertos do sertão final que vira uma floresta de seres humanos plantados e fincados como raiz pra florescer mais gente.
Bem como a produção da filha de Rosemberg, a também cineasta Bárbara Cariry é digna de nota, já que organizar e coordenar uma realização de 10 anos e saber quando parar deve ter sido uma das decisões mais difíceis a se tomar pelo grupo familiar – comparável aos intentos recentes das diretoras que filmaram o Impeachment como Maria Augusta Ramos e Petra Costa, que igualmente precisaram saber quando parar de filmar e finalizar seus filmes frente à coqueluche de informação que não para de acontecer neste Brasil apocalíptico, ou seja, estamos falando respectivamente dos documentários “O Processo” e “Democracia em Vertigem”.
Isto porque “Notícias do Fim do Mundo”, que integra a seleção do 29o Festival Cine Ceará, é um filme coletivo, é feito de um mutirão, como bem colocou o próprio cineasta. E a equipe recebeu muitas doações, inclusive depoimentos revolucionários de colegas de profissão, como de cineastas produtores independentes do naipe de Cavi Borges, do próprio Edgard Navarro (já mencionado acima pelo filme “Abaixo A Gravidade”), Helena Ignez, Bárbara Vida, e um tributo especial a Luiz Rosemberg Filho (de “O Jardim das Espumas” e “Crônicas de um Industrial”), o mestre cineasta quase xará que faleceu este ano, e que simboliza outra vertente do Cinema Marginal, do Cinema de Invenção e experimentação para além de Sganzerla, com afeição pela colagem que a edição de Cariry também demonstra em “Notícias do Fim do Mundo”.
E nada surtiria efeito se a trilha e efeitos sonoros não costurassem tudo nas mãos de Érico Paiva, mais conhecido como Sapão, um dos maiores e mais requisitados profissionais do som de todo o cinema no Nordeste, que aqui teve a hercúlea tarefa de montar a colagem sonora de diferentes tempos e espaços, comprovando que a real metafísica do cinema de fato é o extracampo sonoro dentro da palavra Audiovisual. Isto e os figurinos e cenários da direção de arte de Sérgio Silveira, como o ônibus espacial intergaláctico já supracitado, fazem do filme um verdadeiro caso de estudo, uma pequena grande viagem de volta para o futuro do pretérito do que estamos enfrentando no HOJE (começando a ser feito 10 anos atrás). Visionário!