No Céu da Pátria Nesse Instante
Entre vermelhos e amarelos
Por Pedro Sales
Durante o Festival de Brasília 2023
“No Céu da Pátria Nesse Instante“, primeiro filme da Mostra Competitiva Nacional do 56º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, sintetiza bem o clima de incerteza das eleições de 2022. O documentário dirigido por Sandra Kogut (de “Três Verões”) recebe um peso ainda maior ao ser exibido na capital para centenas de pessoas no Cine Brasília. A própria exibição do longa em si condiz com os fanatismos retratados em tela, a partir do momento em que o filme motivou respostas enérgicas do público, de gritos de “miliciano” a aplausos e cantorias ao som dos jingles do presidente Lula. No entanto, o maior mérito de Kogut ao realizar o documentário nem chega a ser o efetivo contraste político, de polos ideológicos antagônicos, mas sim o contraste de funções e realidades e a convergência de opiniões. Cada personagem possui muitas particularidades, mas compartilham dos anseios. Existem militantes, funcionárias da Justiça Eleitoral, vendedor de toalhas e uma eventual primeira-dama.
Tudo começa em 2022, ano de eleições e polarizações. De um lado, Jair Bolsonaro tentando a reeleição. Do outro, Lula voltando do cárcere em busca do terceiro mandato. Pode parecer inicialmente apenas um embate entre petistas e bolsonaristas, entre vermelhos e amarelos. A cineasta, porém, também aborda o meio termo, não enquanto espectro político, mas como instituição necessária para o voto, a Justiça Eleitoral. Neste sentido, a introdução do longa antecipa bastante a tônica da obra. A apresentação dos oito personagens orienta qual é o papel de cada um deles nessa história. Portanto, ao analisar os dois lados e a Justiça, o filme propõe a ser um retrato imparcial, apenas em um primeiro momento – vale lembrar que documentário nenhum tem essa obrigação, imparcialidade é competência do jornalismo, não do cinema.
As diferentes realidades de “No Céu da Pátria Nesse Instante” reforçam a força motriz do filme: o contraste. A Justiça Eleitoral de Marajós, no Pará, com a agente andando de moto recolhendo os dados, não possui o mínimo da estrutura que o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) do DF. A casa do vendedor de toalhas também não se compara ao apartamento do ex-deputado federal Marcelo Freixo e da esposa Antônia Pellegrino. Entretanto, o principal foco não é simplesmente mostrar as diferenças regionais e econômicas do país – o longa é filmado no Rio de Janeiro, São Paulo, Distrito Federal, Belém e Santa Catarina -, é evidenciar as convergências. Em uma cena, por exemplo, Lula sobe ao palanque no Rio de Janeiro para discursar. Kogut insere o espectador nos bastidores, ao lado dos políticos, e também na multidão, com os eleitores. Não importa renda, todos estão ali por um ideal, o voto de cada um tem o mesmo valor, como aponta uma das personagens.
Apesar da construção efetiva das figuras retratadas e de seus ideais, a obra aos poucos perde um pouco do fôlego. A representação de Ferreirinha, um dos únicos bolsonaristas do filme, depois de certo momento passa a ser repetitiva. O problema não é do discurso repetido a esmo, as militantes do PT também se repetem muitas vezes, é da própria cineasta que exaustivamente só mostra o personagem nos mesmos lugares, como a Igreja e a casa. Talvez, isso se dê pela dificuldade de encontrar outros personagens do mesmo espectro dele. Logo na primeira cena, ouve-se um áudio. Uma mulher diz que não participaria do documentário por se tratar de uma cineasta “de esquerda”, “comunista”, o que evidencia a dificuldade de encontrar quem estivesse disposto a participar. Dessa forma, o “outro lado” é materializado apenas em um personagem, mesmo com a posterior revelação de que o vendedor de toalhas também era apoiador de Bolsonaro, mas que prefere vender as toalhas e fazer a contagem no “Datatoalha”.
Outro problema estrutural de “No Céu da Pátria Nesse Instante“, além da representação “única” dos direitistas, é a variedade de temas. Falar sobre política não é fácil, filmá-la tampouco. Com os muito personagens, muitos assuntos são levantados e às vezes isso causa dispersão. Ainda sim, a cineasta tenta associá-los pela montagem. Quando se fala de compra de votos, a montagem alterna entre duas localidades que sofreram desse crime eleitoral. Talvez, uma das melhores sequências do documentário diz respeito exatamente a essa construção narrativa de associar os personagens tematicamente. O temor é universal para todos ali, sejam bolsonaristas ou petistas. Em primeiro lugar, todos temem perder as eleições e posteriormente as consequências desse resultado. Novamente, Kogut consegue unir as diferenças, demonstra como o processo, de certa forma, é igual para os dois lados.
Por se tratar de diferentes retratos e sensações durante o processo eleitoral, a participação e abertura dessas figuras são fundamentais. As reuniões e entrevistas por Zoom, então, proporcionam isso. Apesar da presença implícita da diretora na obra, ela não aparece, não protagoniza – a única exceção seria no final em que a presença dela torna-se provocadora, fazendo com que os bolsonaristas entreguem frases memoráveis de tão vergonhosas. Ou seja, o protagonismo é das figuras retratadas, que filmam com os próprios celulares e demonstram vulnerabilidade ao tornar o privado público. As conversas de domingo do bolsonarista, por exemplo, são interessantíssimas. A esposa dele relata ser filha de um sem terra, mas odeia o MST por algo que uma professora disse. Doutrinação ideológica na escola? Ou uma presidente de seção durante as eleições que precisa esconder o pingente com estrela para não sofrer nenhuma repressão. Esses pequenos momentos da intimidade amplificam a verdade e paixão já contidas no filme.
“No Céu da Pátria Nesse Instante” propõe-se a aceitar a difícil tarefa de transpor o caos e polarização das eleições de 2022. Com uma riqueza de personagens, de diferentes lugares, o documentário sintetiza efetivamente o que estava em jogo para cada um dos polos políticos. O contraste é uma ferramenta narrativa muito potente e Sandra Kogut sabe disso. A catarse do momento do segundo turno é engrandecido por essa montagem alternada. Mas a cineasta também sabe que o mero contraste não é suficiente para resumir a política brasileira, quando ela aposta em universalizar as paixões políticas e temores, o retrato torna-se completo. A obra avança pouco para depois das eleições. Antes, um personagem diz que se os petistas perdessem, não aceitariam. A previsão foi errada, em partes. O documentário também se insere nos atos antidemocráticos de 8 de janeiro, a inconformidade com a derrota por meio do crime. Ver essas imagens em uma tela remete muito mais a uma distopia do que à própria realidade. Por fim, é evidente que este é um filme que não existiria sem a vitória de Lula nas urnas, ou pelo menos não desse jeito. O triunfo político e a alegria ao som de “Tá na hora do Jair” daria lugar a um lamento e chamado para resistência – mas, cá entre nós, ainda bem que não.