Nietzsche Sils Maria Rochedo de Surlej
Paisagens da alma
Por Michel Araújo
O filósofo niilista Friedrich Nietzsche escreve cartas e diários viajantes enquanto caminha pelas paisagens de Sils-Maria. Ao longo de suas várias estadias de verão nos alpes suíços a partir de 1879, concebe algumas de suas obras mais conhecidas como “A Gaia Ciência”, “Assim Falou Zaratustra”, “Além do Bem e do Mal”, “Crepúsculo dos Ídolos” e “O Anticristo”.
A concepção individualista da corrente filosófica niilista toma força e suas acepções vão se reconfigurando numa sucessão de epifanias durante suas longas caminhadas pela geografia ainda selvagem dos vales de Engadina – caminhadas essas que duravam seis, oito ou mesmo dez horas num dia. Repudiando a massa urbana da sociedade industrial e exaltando o indivíduo livre e não gregário, acreditava na liberação advinda do fim de estruturas totalizantes como a religião ou qualquer forma de coletivismo.
Cerca de um século e meio depois, oriundo do país Brasil, América Latina, terceiro mundo, o diretor egresso do Cinema Marginal, Júlio Bressane, realiza um longa metragem em formato de travelogue pelos percursos os quais Nietzsche relata em seus escritos.
O roteiro de Nietzsche Sils Maria Rochedo de Surlej é feito com a assistência das pesquisas de sua fiel colaboradora Rosa Dias, professora titular no curso de Filosofia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. A edição é feita por Rodrigo Lima, que assim como Rosa, colabora assiduamente na filmografia de Bressane já há anos.
O formato de vídeo-diário com câmera manual e baixa definição pouco importa para Bressane enquanto base infraestrutural da produção, e, para o diretor, diz mais respeito à uma “textura” do filme, a qual se atinge através das limitações estéticas. Tal qual Nietzsche, uma reflexão sobre a materialidade não vem ao caso para o diretor que parece esquecer suas origens terceiro-mundistas.
A proposição feita de Nietzsche Sils Maria Rochedo de Surlej é que as imagens não se comportem como respostas para indagações filosóficas ou existenciais, mas como os próprios enigmas com os quais Nietzsche se defrontou; Bressane ousa mesmo em cunhar a expressão “imagens-filosofia” para se referir à sua obra não como uma reflexão filosófica mas como a própria matéria bruta da qual a filosofia se origina.
Fazem cinquenta anos do 5º Festival de Brasília, de 1969, no qual Bressane conheceria Rogério Sganzerla, cada qual apresentando seu próprio longa-metragem – respectivamente “O Anjo Nasceu” e “A Mulher de Todos”.
Desse encontro surgiria a icônica produtora, organização chave para o Cinema Marginal, a “Bel-Air Filmes”. As produções de Bressane e Sganzerla nesse dado momento de vanguarda marginal cinematográfica clamavam um barroco político – embora não propriamente politizado – que subvertia a lógica clássico narrativa para fins de agitação, fervura, incômodo e mesmo ataque frontal ao espectador.
Hoje, numa total contramão dos princípios agitadores tão vívidos no cinema moderno, o resfriamento dos sentidos e a reflexão que muito bebe de um eurocentrismo se instauram na tela, fomentando um idealismo que simplesmente não casa com as conjunturas da latino-américa.
Sganzerla difere o que chama de “cineastas do corpo” e “cineastas da alma”. Estes são entendidos respectivamente como cineastas que se comprometem com a frontalidade e a materialidade, um papel ativo do corpo e da concretude da imagem – o que engloba figuras díspares como Orson Welles e Jean-Luc Godard – e os cineastas idealistas de dramas subjetivistas, como Michelangelo Antonioni, Ingmar Bergman e Federico Fellini.
Como se pode, portanto, passar da água ao vinho? A carreira de Bressane já há tempos caminha pelas beiras de uma filosofia rarefeita que encanta o público estrangeiro, mas que pouco ou nada diz respeito a seu país de origem.
E logo ao atingir meio século de seu momento de engate num episódio tão pertinente da história do cinema brasileiro – a organização da Bel-Air Filmes –, se debruça sobre uma experimentação de puro culto à personalidade, num cenário que sequer é o mesmo que diz respeito aos escritos nietzschianos. Sils-Maria mudou, a paisagem não é a mesma natureza selvagem na qual Nietzsche por vezes se perdeu, como o próprio Bressane afirma: “cortaram as árvores”.
De fato, cortaram as árvores, a sociedade em muito mudou, um único sujeito – ainda por cima radicalmente individualista – não diz respeito ao compasso da história que o sucedeu.
Tentar ver por 58 minutos com os olhos de um indivíduo de um século e meio atrás, em outro continente, é um prato cheio para a alienação que esse próprio indivíduo tanto criticava na civilização industrial.