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Não Sei Quantas Almas Tenho

Seres tabelados e periódicos

Por Fabricio Duque

Durante o Festival Cine Fantasy 2022

Não Sei Quantas Almas Tenho

Desde pequeno, sempre fui fascinado por histórias de vampiros. Não sei explicar, mas soavam mais verdadeiras e com um maior nível de liberdade. Era como se a existência deles, ao deixar de se preocupar com a vida, ganhasse uma dose visceral de fluidez básica e genuína, em que o único objetivo era degustar momentos por toda a eternidade. Uma boemia que só tinha uma contrapartida: sugar o sangue de outros vivos. Esse simbolismo vermelho, apesar das consequências-regras, da não permissão solar,  por exemplo, causava-me um êxtase visual, porque acreditava que a mordida desencadeava o último gozo da vida. Uma pequena morte que alcançava a plenitude do fim. Não, eu não tinha tanto discernimento assim na época, mas durante anos ansiei por encontrar esses seres da escuridão. Até agora. Ao ser apresentado a “Não Sei Quantas Almas Tenho”, novo filme de Patricia Niedermeier e Cavi Borges, nós espectadores recebemos um estético experimento de alquimia, racionalizando vidas tabeladas e periódicas.

Selecionado para a mostra de longas-metragens do Cine Fantasy 2022, festival de cinema fantástico, “Não Sei Quantas Almas Tenho”, título do poema homônimo do português Fernando Pessoa (“Cada momento mudei. Continuamente me estranho. Nunca me vi nem achei. De tanto ser, só tenho alma. Quem tem alma não tem calma.”), não busca o o artifício gore e sim a ambientação sensorial do tempo corrido das substâncias, em seus estágios de ensaio, fusão, descobrimento e naturalidade das consequências; o desencadeamento de metáforas, a pitaya, por exemplo; e principalmente sua narrativa, contada por nove capítulos (mais um extra-final) de nomes dos elementos da tabela periódica. O 9 é o último número nuclear da numerologia, que representa “o fim de algum ciclo e a iminência do começo de outro” e “o fim de uma jornada – cruzar esse caminho culmina numa coleção de eventos que transformam um simples novato em alguém preparado e com muitas experiências de vida”. E/ou com a frase “Não alimente o lobo” numa parede em uma rua escura. O longa-metragem é um conceito de gênero, por imprimir o existencialismo flutuante, à moda de Jim Jarmusch e seu “Amantes Eternos”, entrecortado por inúmeras referências cinematográficas (sim, os diretores, que são cinéfilos de carteirinha, citaram explicitamente “Asas do Desejo”, de Wim Wenders); por sacadas irônicas (a Romênia, uma delas); e por figurações do meio (o sangue artificial, que em um primeiro momento pode lembrar o seriado “True Blood” da HBO, mas que aqui muito provavelmente quer criticar os próprios humanos como nivelados pela superfície).

Patricia e Cavi, juntos com Jorge Caetano (parceria desde “Reviver”, “Fado Tropical”), querem a construção-progresso,  absorvendo adversidades e sortes no quesito técnico, e encorporando inclusive o amadorismo estético. Dessa forma, “Não Sei Quantas Almas Tenho” desenvolve-se pela criação da ficção mais real (não documental), de cinema direto, deixando o filme acontecer durante o filme, entre medições e perguntas. “O problema de perder a memória é que você não sabe o que perdeu”, diz-se. O que pode soar ingênuo nesta obra, na verdade, é o contrário. Há uma libertação da ideia-essência que a deixa ainda mais possível, visto que o que vemos é a captação crua de uma imagem identificável. Chumbo, mercúrio, cobre, cobalto, tungstênio, tálio, ferro, urânio, plutônio e carbono, cada fórmula uma representação da transformação, que ora inverte os papéis quando “presentes de poder” são contemplados, sozinhas possuem funções próprias, acopladas, “bagunçam” a lei do existir. “Chumbo da realidade numa poeira dourada”.

“Não Sei Quantas Almas Tenho”, perdoem-me os mais radicais, é o que podemos definir de pós-terror moderno, gerando medo, ameaça insconsciente, e uma ansiedade irracional.  O longa-metragem, que também experimenta vídeo-instalações, abriga-se na estrutura psicológica de suspense sobrenatural (os fluidos vitais são poetizados pela imagem de epifania alucinógena), especialmente por “Suspiria”, obra semi-surreal, onde trama e personagem são secundários ao som e à visão. Porém, aqui, no filme em questão, não há características típicas do universo dos vampiros, e, sim, há a utilização platônica da diegese (conceitos explicados e leis em aprendizagem didática). Em “Não Sei Quantas Almas Tenho”, o protagonista é o cenário, de visita, quase turística, como a Capela de Ossos, em Évora, Portugal; a cena do piano.

Continuei minha análise do primeiro parágrafo daqui. Será então que os vampiros são seres mais realistas, porque vivem eternos na escuridão, tendo a luz como uma nostalgia? Serão os vampiros mais humanos por estarem a frente de seu tempo em relação a optar pelos bancos de sangue? Ou será que vampiros são uma extensão do que nós já somos, como, por exemplo, a de uma psicopatia adormecida pelas limitações da sociedade? A maestria de “Não Sei Quantas Almas Tenho” é trazer perguntas, comportando-se igual a um cientista em busca da cura, rodeadas de obsessões químicas e substâncias de alto risco. Olha, mas eu preciso dizer que fiquei com bastante ranço da vampira (interpretada por Patricia Niedermeier). Como ela pode recrutar “lanches” em um cinema, antes do filme acabar? Isso é um desespero aos vampiros cinéfilos. Brincadeiras à parte, “Não Sei Quantas Almas Tenho” é a incursão da dupla no cinema de gênero, que suga de Bela Lugosi a Quentin Tarantino, tudo em uma fábula realista burlesca e shakespeariana. E com o amor-possessão que cruza os séculos e só acaba pela água benta do clássico romantismo utópico de dois amantes numa DR terminal. Será que além de sal, cruz e sol, os vampiros serão extintos também pelo politicamente correto?

3 Nota do Crítico 5 1

Conteúdo Adicional

  • Que maravilha de crítica! Estou mexida como uma vampira que olha pelo buraco da fechadura perscrutando o filme. Quero vê-lo urgente em minha sede de beleza ! Obrigada por adiantar essa expectativa sedenta!

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