Mugunzá
Aqui, quem manda, são os Orixás
Por Vitor Velloso
Mostra de Tiradentes 2022; Cinefantasy 2022
Ary Rosa e Glenda Nicácio, homenageados na 26 Mostra de Cinema de Tiradentes, há pouco tempo marcaram presença na Mostra Aurora, sempre se destacando com seus filmes que procuravam uma representação do Recôncavo como uma síntese particular das particularidades da cultura brasileira. Após “Café com Canela” (2017), “Ilha” (2018), “Até o Fim” (2020), “Voltei!” (2021) e “Na Rédea Curta” (2022), a dupla exibe “Mugunzá” na abertura da Mostra, mostrando que a intensa produção ainda pode render mais debates para o cinema brasileiro contemporâneo.
Estrelado por Arlete Dias e Fabrício Boliveira, o longa retoma algumas características do cinema de Ary e Glenda, como os espaços físicos mais limitados, as conversas mediadas por bebidas na mesa e a forte ligação da música com a condução dramática e narrativa. Mas aqui, a musicalidade é uma marcação mais frequente, que não apenas contribui na construção da película, como tem o poder de criar constantes digressões para uma determinada exposição de seus personagens. Apesar do mérito desses números musicais no desenvolvimento de particularidades dramáticas, há um pequeno excesso na forma como eles criam intervenções diretas, deslocando determinadas sequências do projeto a um lugar estranho, que suspende a experiência, mas não possui grande impacto, quanto vimos em “Até o fim” (2020), por exemplo.
Contudo, mesmo com essa sensação de interrupção em determinados momentos, “Mugunzá” consegue concentrar duas atuações centrais que transformam o filme em uma dinâmica ininterrupta de duas interpretações que são verdadeiros fenômenos. Arlete e Fabrício possuem uma química em cena que é irretocável, mesmo quando parte da dinâmica assume uma troca de papel.
Entre idas e vindas de rostos semelhantes, o prato de comida vai tomando as rédeas de uma narrativa que se desenha para uma vingança histórica, um acerto de contas que finda as questões referentes à um passado não tão distante, que mesmo em suas questões pessoais, denuncia a formação de estruturas de poder no Brasil, suas formas de sedução e tradições monopolistas baseadas na manutenção da opressão. Neste caminho, há um esforço de criar um exercício didático que, a partir de histórias, conta como aconteceram as tentativas de “progresso” em Cachoeira, mostrando influências externas e as raízes culturais envolvidas neste processo. Essa questão é particularmente interessante, pois compreende essa narrativa a partir dos costumes, da ancestralidade, da relação entre o mundo material e um mundo que está além, temáticas que estão presentes em outra obras de Ary e Glenda, mas aqui possui uma verve distinta, pois há um caráter imediato nessa relação.
“Mugunzá” não é passo distinto na carreira dos cineastas, mas demonstra uma certa aproximação com a poesia, ao passo que desnuda a própria produção, revelando seus dispositivos e expondo os recursos cênicos. Essas decisões aproximam o projeto de um caráter mais teatralizado, não apenas na forma de enquadrar, mas nos truques que desmontam uma certa linearidade da montagem. Um exemplo disso é a cena em que os dois estão em pé com a cabeça apoiada em um travesseiro, demonstrando que estamos observando o casal na cama. Basta um close para transformar essa representação do espaço físico. Essas características fazem do longa uma interessante demonstração de diferentes recursos de Ary e Glenda, reforçando que a maturidade de seu cinema ganhou um corpo que não precisa mais da literalidade material, apenas de uma representação concreta de suas dinâmicas.
Não por acaso, “Mugunzá” se debruça em torno das influências culturais que atingem a vida de Arlete, tanto no campo do poder, como na fé. São essas investidas contra a personagem e suas tradições que passam a se desmontar. A decadência do “progresso” se revela um objeto estrangeiro, que aceita parte do dinheiro como “um bom começo” e procura corromper o único objeto de resistência ao monopólio do Prefeito. E se parte dessas motivações contra a protagonista possuem origem no caráter frágil da masculinidade de um dos personagens, Arlete se torna um eixo fatal da inevitável ruína de tudo aquilo que o Brasil contemporâneo promoveu como representação nacional nos últimos anos. O conservadorismo que elogia o Mugunzá, vai entrando em colapso e expulsando seu conteúdo gástrico para dar lugar a um dos poucos momentos de verdadeiro afeto de toda a obra.
As consequências podem ser severas, mas o conteúdo amargo desse passado histórico recente encontra um fim sofrido, como há de ser.