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Mostra de Cinema de Ouro Preto 2018: Terceiro Dia


Garimpando no limbo

Por Gabriel Silveira

Direto da Mostra de Cinema de Ouro Preto 2018


No seminário de encontro de arquivos desenrolou-se um debate internacional após o discurso de Céline Ruivo (diretora e curadora do Acervo da Cinemateca Francesa e coordenadora da Comissão Técnica da FIAF). Na fala, a diretora apontou diversos problemas que a preservação do primeiro mundo passa atualmente. Como confiar em certos projetos de restauração onde não houve o devido registro processual dos restauradores? Napoleon de Abel Gance existe em 30 versões diferentes; filmes de Chaplin eram filmados simultaneamente por três câmeras diferentes: As melhores tomadas passariam para a montagem do corte de distribuição norte americana, as medíocres seriam projetadas para o mercado europeu e a “ralé” ficava para o terceiro mundo. Em quem, por fim, confiar? O filme acaba saindo no mercado com três cortes circulando pelo mundo com três durações diferente. Depois de decidir qual cópia resgatar, como se passa para os uns e zeros? A Arri com certeza venderá o peixe de que o seu sensor 4K é infinitamente superior ao da concorrência. Mas será que 2K já não é o suficiente para o projeto em questão? A verdade é que todo dispositivo de captura passa pelo mesmo dilema de todo produto dentro da obsolência programada: o quanto maior, melhor. Mas este não é o caso quando se tenta preservar o patrimônio humano, um sensor pode ser funcional para a textura de uma cena enquanto outro pode ser mais favorável à cor da mesma, a escolha parte do bolso de quem banca o projeto (infelizmente). Tudo bem, tocar no assunto do FFV1 (formato open source) como um possível padrão oficial de catalogação digital que não morre como o ProRes, pensar o status-quo da degeneração do nitrato e combater a política infame de depositores de arquivo que doam DCPs encriptados é mais que válido, mas, e quanto a Cinemateca do MAM? O que pode ser feito? E quanto às cópias de filmes de Glauber, Ozualdo Candeias, Mojica, Sganzerla e Norma Bengell que desintegram-se na umidade de suas síndromes de vinagre. É, para isso não há verossímil solução no horizonte. Mas, quando nossa colonização vingar, pode ter certeza de que alguém vai dar a grana pra comprar meia dúzia de geladeiras da Brastemp para salvarmos nosso cinema. Por ora, a emulsão brasileira vai mesmo cedendo seu lugar para que, no fim, reste apenas a gosma irreconhecível de nosso acetato derretido pelo fulgor de um Carnaval sem fim.

Mais cedo, Bill Morrison em sua coletiva de imprensa (que será publicada, posteriormente, na íntegra pelo Vertentes do Cinema ao lado da de Céline Ruivo) afirmou que, além do filme ter começado como uma explosão (vide Dawson City: Tempo Congelado), o cinema de verdade teria nascido, apenas, com o surgimento da projeção coletiva do cinematógrafo pós-individualidade do kinetoscópio. Para Bill, em tempos de uma cinefilia introspectiva baseada em sessões de VLC, teria o cinema, de fato, morrido (novamente)?

Apesar de continuarmos nesta nota menor, os presentes da sessão da mostra preservação do fim de tarde projetada no Cine Vila Rica foram agraciados com as imagens ressuscitadas de Orlando Bonfim Netto. Da obra de um dos expoentes do cinema capixaba moderno pude assistir ao árido Itaúnas Desastre Ecológico, mesmerizante denúncia, em anos de chumbo, que aponta o desintegrar quase que integral da vegetação da cidade do ES. Dos anos 1930 aos 1980, a vegetação cedeu mais de 80% de seu espaço a uma areia invasora que era oriunda não somente do desmatamento no estado, mas, de todo o Brasil. Finalizando a mostra do acervo capixaba, foi exibido o seu Augusto Ruschi Guainunbi, retrato em primeiríssimo plano da luta do agrônomo, ecologista e naturalista brasileiro pela preservação de diversas espécies de beija-flores. O traço das espécies é traçado com a potência da sinergia de um beija-flor-brilho-de-fogo pela narração meticulosa e pelos vislumbrantes planos detalhes mais que precisos dos bateres de asas. Bonfim Netto, claramente, sabia enquadrar coisas nossas como quem enquadra um filho.

Na mostra preservação das 19h45 o passado retornou num estouro fumegante. Mas antes da combustão vem a calma do catalisar. Este é o Brasil (utopia) de Rogério Sganzerla, tal corte ainda é uma daquelas obras que acabam me pondo em uma situação desconfortável toda vez que tento expressar-me a seu respeito. Tudo no filme é perfeito, a nostalgia pelo Brasil que tem o dever de dar certo na voz e no tocar de João Gilberto; a intimidade no compor da trilha musical nacional oficial de Gil, Caetano e João; os olhares e os planos encantados de um Orson Welles de It’s All True. Nosso mar, nossa terra e nossa gente em nosso próprio ritmo. Ainda tratando de sínteses, A Fila de Katia Maciel retratou em cinco minutos, com uma exímia ironia chanchadesca, o status-quo areia movediça de nosso cinema. Nos anos 1990, após o encerramento das atividades da Embrafilme pelo governo Collor, foi liberado um único edital onde seria liberado o financiamento de três filmes. Cada concorrente deveria levar nove cópias de toda a documentação de seu projeto para a entrega em um prédio no centro do Rio às 14h. Este golpe de vilania, que mais parece um golpe de escárnio de um vilão de Scooby-Doo, enredou numa fila extraordinária onde todo o cinema brasileiro, de então, encontrava-se esperando a oportunidade de entregar suas imensas malas de arquivos na expectativa de ganhar uma migalha do todo poderoso pão que o Diabo amassou. A partir de O Som ou Tratado de Harmonia de Arthur Omar, as obras foram todas projetadas em 35mm. Quanto ao filme de Omar, pretendo ainda escrever uma análise dedicada posteriormente, por ora, deixo aqui que não me divirto assim com cacofonias expositivas que fazem de membros dilacerados do IML dispositivos válidos há tempos. Em Das Ruínas à Resistência, Carlos Adriano resgata filmagens de Décio Pinatari — sim, o poeta ousou uma carreira no cinema — que a haviam sido abandonadas. As intenções originais de Décio quanto as imagens resultariam em um documentário formalista a propósito de uma revolução de operários anarquistas da década de 1930 e outros objetos de cotidianos afins. Adriano afirma dizer a Pignatari que quando faria uso das imagens não daria luz a uma obra construtivista, mas Das Ruínas resulta na melhor onda formal à la Carolee Schneemann que a transa das imagens de Décio e a moviola de Adriano poderiam parir. Ver e ouvir de Antonio Carlos Fortuna expõe três artistas plásticos da vanguarda sessentista que, nas idiossincrasias de suas obras, confluem a subversão do artista com síndrome de Cristo e a deformação da dramatis personae documental dentro da narrativa de um ainda fresco 1964. Quem ganhou o prêmio nostalgia foi Ivan Cardoso com À meia noite com Glauber, colagem eloquente da presença audiovisual das egotrips de Glauber e Hélio Oiticica que sintetiza a aura e o discurso de uma geração alicerce na mais pura harmonia do abecedário terrir de Cardoso. Confesso que experienciar fragmentos de Der Leone Have Sept Cabeças, Cabeças Cortadas, Bandido da luz vermelha, À meia noite levarei sua alma e Câncer em toda a glória da projeção daquela emulsão numa tela daquela imensidão foi de uma euforia inesperada.

Às 22h45 a mostra contemporânea saudou por completo espírito do empírico em grande parte dos filmes projetados que tratavam da corporalidade da celulose e o mote de sua impossibilidade. Também pretendo escrever sobre a intertextualidade intergalática das projeções posteriormente, mas posso afirmar, por enquanto, que — ao lado de El Meraya de Melissa Dullius e Gustavo Jahn, Praça XI de Cláudio Tammela e Antes do Lembrar de Luciana Mazeto e Viníciu Lopes — a transa marítima entre Maya Deren e Kenneth Anger ofertada à Iemanjá (Terra não dita, mar não visto de Lia Letícia) apoiada pela sinfonia atonal da metrópole cacofônica de um Recife perdido em sua política anti-corpórea de seus vulgares arranha-céus que geram uma esterilidade formal, que só pode ser expurgada pelo toque da artista que sangra a obra com o artesanato de suas cores (O olho e o espírito de Amanda Beça), se trouxe ao plano físico de uma tela brasileira aquilo que nosso cinema tem fadado a uma morte premeditada por um letárgico e atroz envenenamento.

Pix Vertentes do Cinema

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