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Morangos Silvestres

Memória, legado e a iminência da morte

Por Pedro Sales

Morangos Silvestres

‒ E a punição?
‒ Eu não sei, a de sempre, eu suponho.
‒ A de sempre?
‒ Solidão.
‒ Solidão?
‒ Precisamente.
‒ E não tem misericórdia?

Quando um idoso começa a contar sobre os seus anos de glória, com uma veia nostálgica, o discurso quase sempre se assemelha a um epitáfio. A primeira cena de “Morangos Silvestres” ilustra bem essa ideia. Isak Borg, interpretado por Victor Sjöström – diretor de “A Carruagem Fantasma” (1921) – é um médico de 78 anos prestes a receber um prêmio em homenagem a sua carreira. O homem, no entanto, não recebe dos seus familiares o mesmo empenho e reconhecimento. O envelhecimento é, naturalmente, tratado como um período em que as pessoas se distanciam. Isak, por sua vez, se distanciou voluntariamente da sua família ao longo dos anos. Seu temperamento frio e indiferente afasta as pessoas de si, com a exceção da empregada Agda, a única capaz de suportar a rabugice do patrão.

O contexto de produção de “Morangos Silvestres” é no mínimo curioso. A obra, lançada em 1957, possui um irmão imediato, “O Sétimo Selo”, também do mesmo ano. O realizador Ingmar Bergman, à época com 39 anos, já começava a meditar sobre a iminência da morte. Nesse, sob uma perspectiva de um homem idoso infeliz e preocupado por construir um legado. No outro, um cavaleiro que trava um duelo de xadrez com a própria Morte. Mas vamos nos ater a Isak Borg.

A proximidade da morte parece tangível para o personagem. Esse fantasma se materializa na forma dos sonhos. Nas cenas oníricas, Bergman atinge um nível de abstração e surrealismo que só é reproduzido novamente em “A Hora do Lobo” (1968). O homem olha para um relógio sem ponteiros, vê uma carruagem capotar na rua e deixar cair o que carregava. A carga é um caixão e o próprio Isak é quem está dentro dele. A cena é intrigante e consegue reforçar o temor do médico em partir. Após o sonho premonitório, o personagem se prepara para a viagem até Lund, cidade onde seria laureado pela carreira como médico. O filme se estrutura, a partir deste momento, como um road movie (filme de estrada). No carro, Isak é acompanhado por sua nora Marianne (Ingrid Thulin), que não é muito afeita a ele. Quando perguntada sobre o porquê de não gostar do sogro, ela afirma: “É um velho egoísta. Não tem consideração e só ouve a si mesmo. Mas esconde bem isso atrás de sua civilidade e charme”.

A proximidade quase forçada entre os dois, porém, corrobora para que ambos se abram. De certa forma, para ele, isso representa quase uma redenção, ou mesmo uma maneira de renegar o caráter indiferente que possui. Enquanto para ela, é a oportunidade de conhecer seu sogro quase sempre fechado.

Outro importante ponto da obra é o poder da memória. Para o personagem, seus melhores anos já se passaram e tudo ele relembra em um misto de tristeza e ternura. Nos flashbacks em que Isak lembra de sua paixão, sua prima Sara (Bibi Andersson), ele exerce uma função espectatorial análoga ao público. Ele assiste às ações com passividade, e a câmera funciona como o olhar do protagonista. A impotência do médico se associa, ainda, com a traição de Sara com seu irmão Siegfried.

O aspecto de road movie de “Morangos Silvestres” desenvolve-se mais quando três jovens pedem carona a Isak e Marianne. A presença deles traz um frescor para o humor do médico, além de um claro choque geracional. “Deve ser horrível envelhecer”, diz Sara, a jovem da carona, que também é interpretada por Bibi Andersson. A fantasmagoria da pessoa amada, nesse caso Sara, demonstra que há muito no médico que não é bem resolvido. Pouco depois, dão carona também para um casal que marca a falência do casamento. Eles brigam e discutem por qualquer ninharia. O contraponto entre a presença de jovens e de um casal infeliz de meia idade representa as diferentes fases da vida. Se o primeiro grupo é alegre e irreverente, no segundo não há o mínimo resquício de felicidade. E isso, de certa forma, causa um efeito em Isak. Ele avalia que tipo de pessoa quer ser.

A fotografia de Gunnar Fischer registra movimentos e deslocamentos do carro em muitos planos gerais. Por outro lado, para promover o aprofundamento psicológico inerente à obra, ele usa vários close em Sjölström, muitas vezes enquadrando ele só, reforçando a solidão do personagem. O campo-contracampo é inventivo. Um diálogo é enquadrado por meio do espelho e, em outros casos, a câmera abre o close para outro interlocutor aparecer no quadro. Nas memórias, os planos gerais são compostos com base no ambiente natural sueco, nas florestas e no canteiro de morangos silvestres, que dá título ao filme.

Ao reavaliar sua vida, decisões e qual será seu legado, Isak é compelido por um desejo de mudança. Ver como existem pessoas gratas pelo seu trabalho, como um frentista – interpretado por Max Von Sydow – que batizará seu filho em homenagem ao médico, faz ele pensar sobre seu real papel. Em outro sonho, desta vez mais catártico, o idoso é confrontado pelas memórias de sua esposa Karin, que também o traiu, e pelo dever principal de um médico: pedir perdão.

Absorto em suas próprias desilusões e tristezas, o médico não percebeu o quanto esfriou. Tal atitude refletiu em suas relações familiares e em sua posterior solidão. O que “Morangos Silvestres” demonstra, por meio do aprofundamento de seu personagem, é que nunca é tarde para mudar. Apesar desse discurso parecer piegas e até mesmo moralista, é construído com organicidade. A mudança em Isak, seu desejo de se reaproximar dos parentes e deixar um legado familiar, além do profissional, é gradual. O espectador enxerga todos os motivos que levaram a isso, desde as memórias de infância até os sonhos reveladores, quase como uma sessão psicanalítica. Não é à toa que Bergman foi um dos cineastas mais comprometidos com a investigação da psique humana.

Morangos Silvestres

5 Nota do Crítico 5 1

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