Miss Lovely
O terceiro mundo vai explodir!
Por João Lanari Bo
Festival de Cannes 2012
Quem diria, o cinema boca-do-lixo habita também as plagas de Mumbai, a maior e mais importante cidade da Índia, com uma população estimada em 22 milhões de pessoas, mais de 12 em seu perímetro urbano – centro financeiro de peso, atividade portuária das mais intensas do mundo, a cidade atrai imigrantes de todo o país e de vários países vizinhos. Tornou-se, é claro, um núcleo cosmopolita de várias comunidades e culturas: é em Mumbai que se situa também Bollywood, o principal centro da indústria indiana de cinema e televisão. “Miss Lovely”, o filme que Ashim Ahluwalia realizou em 2012, tem tudo isso, Bollywood e boca-do-lixo, em sua, digamos, matriz estética. Não é preciso ir muito longe para aferirmos a validade da proposição: aqui mesmo em território paulistano temos a insuperável Boca do Lixo, que tanto permeou anseios e expectativas de boa parte da comunidade cinematográfica, público e produtores, mormente nos anos de 1970 e 1980. Incluem-se nessa comunidade não apenas trabalhadores e trabalhadoras do sexo, mas também cineastas oriundos da classe média que souberam apropriar-se desse imaginário faroeste do terceiro mundo, como dizia Rogério Sganzerla. A Boca do Lixo e seus produtos audiovisuais temperados de sexualidade – e paixões correlatas, como ciúme, amor, luxúria e paranoia – captou uma assombrosa transição de comportamentos que afligiu a sociedade urbanizada nas grandes cidades brasileiras, São Paulo, sobretudo, mas não exclusivamente. Na transição para os 80’s, essa produção terminou derivando para o sexo explícito, sintonizada com relaxamento censório (fim da ditadura) e demandas mais “realistas” da audiência. A absurdidade do desenvolvimento socioeconômico típica dos países subdesenvolvidos, como Brasil e Índia, tem o seu quinhão nessa história, mas a realidade não se esgota na sociologia: a tecnologia e seus avanços também tem o seu papel, basta lembrar como a introdução do videocassete afetou (e facilitou) produção, distribuição e consumo dos filmes sex-exploitation. Hoje, o cenário é digital, e o consumo voyeurístico e concupiscente ligados ao sexo atinge níveis inimagináveis, na Índia, Brasil e resto do mundo.
Existe, portanto, uma camada comum que aproxima espectadores brasileiros e indianos em torno de uma obra como “Miss Lovely”: o estilo boca-do-lixo da produção, que funciona como um sintoma de rupturas, assimilações e repressões dos valores morais da sociedade, numa época marcada pelo fim do celuloide e o advento do vídeo nas produções. O diretor Ahluwalia conta que teve que restaurar trechos de cenas sensuais de filmes antigos, os negativos estavam danificados – muitos foram escavados em porões ou localizados em quartos dos fundos. A produção tornou-se, paradoxalmente, um projeto de arqueologia, como se estivesse desenterrando uma antiga civilização do desprezo histórico. A intenção inicial era fazer um documentário sobre a indústria pornô underground de Mumbai: muitos dos protagonistas, entretanto, pediram para não serem mostrados cometendo atos ilegais – a pornografia era (e é) proibida na Índia. A saída foi ficcionalizar a ideia, já que a legislação em vigor no direito indiano – Lei da Representação Indecente de Mulheres (Proibição) – impõe severas penas aos contraventores. Não obstante, os produtores, entre filmagens clandestinas, prisões espetaculares e tenacidade inquebrantável, continuaram (e continuam) trabalhando, como fizeram na época focalizada na fita em tela, entre 1986 e 1993. Filmado em Kodak Super 16 e 35mm, em widescreen, com uma trilha musical collector item – entre outros, os italianos Egisto Macchi e Piero Umiliani – “Miss Lovely” alterna entre gêneros para desconstruir, em última análise, a própria narrativa. Melodrama, documental, filme noir, armazéns abandonados, festas etílicas, câmera na mão reproduzindo movimentos clichês, equipes patéticas empunhando lâmpadas caseiras, aspirantes a estrelas obrigadas a simular sexo com monstros e demônios fantasiados – bem-vindos à Boca do Lixo de Mumbai. No meio disso tudo, transitando entre quartos de motel decadentes e becos escuros, dois irmãos, o sórdido e dominador Vicky (Anil George) e o taciturno e ressentido Sonu (Nawazuddin Siddiqui), lutam para sobreviver e, de alguma forma, inventar um romance. Não é coincidência que a personagem feminina alvo de desejo de Sonu leva a alcunha de Pinky, vivida no filme pela atriz Niharika Singh: pinky é a senha pela qual é conhecida a produção softcore no Japão, uma das influências assumidas pelo realizador Ashim Ahluwalia.
“Miss Lovely” expõe o submundo da indústria cinematográfica indiana – é o negativo do mundo encantado de Bollywood. Garrafas vazias, boates miseráveis, escritórios indecentes, papel de parede descascado, coadjuvantes torpes, uma ação que parece o tempo todo fora do eixo – o terceiro mundo vai explodir! Quem tiver de sapato não sobra, não pode sobrar! (apud Rogério Sganzerla).