Minha Terra Estrangeira
Organismos vivos, suas vidas e seus territórios
Por Fabricio Duque
Assistido durante o Festival É Tudo Verdade 2025
Não é nem um pouco fácil, muito menos simples, buscar o entendimento do espírito indígena em tempos do agora, em que nossos olhos ocidentais, mais imediatistas e limitados à imagem do que vemos, soam estrangeiro, e, sim, padronizados em enxergar um exotismo e uma “diferença” que “está ali” (“longe da gente”), isso acontece talvez porque nos falta a dosagem percepção-permissão da transcendência, da expansão da energia mental à ancestralidade e de um tempo que se suspende da realidade, num misto de contemplação e sensibilidade etérea do próprio existir, com um que exemplificado da atmosfera captada do realizador tailandês Apichatpong Weerasethakul (que por sinal esse sensorial chegou a ser incorporado na terceira temporada do seriado de “White Lotus”). Assim, por “regra consequência”, nós sempre estaremos distantes a isso tudo, por mais que estudemos e que analisemos os povos indígenas, esses seres, que se encontram em nosso “território patriótico”, sempre serão um experiência. Esse preâmbulo se adequa perfeitamente para que eu possa começar este texto sobre o documentário “Minha Terra Estrangeira”, novo filme de João Moreira Salles, ao lado de Louise Botkay e o Coletivo Lakapoy.
Exibido na sessão Programas Especiais do Festival É Tudo Verdade 2025, “Minha Terra Estrangeira” é um filme de cosmovisão, de perspectivas estéticas e de criação por conceitos autorais. Mas a complexidade toda talvez esteja no querer de se fundir formas narrativas tão diferentes e até mesmo incompatíveis. Se o cinema ocidental busca traduzir imagem, o cinema indígena está mais preocupado com o discurso. Ao juntar os dois, é inevitável que se tenha conflito. O que poderia ser um ganho ao espectador, que questionará os porquês. Por exemplo, para a equipe dos povos originários, a eleição de um indígena concorrente ao cargo de deputado federal é muito mais relevante, necessário e focal que a eleição à presidência. Ainda que façam campanha ativista para o candidato Lula, a vaga na política funciona mais direta para que possam lutar pelos interesses mais locais e urgentes. Assim, com o filme quase pronto, não direcionado à campanha do representante das aldeias da Amazônia, João, junto dos montadores Laís Lifschitz e Eduardo Escorel, precisaram entender que este filme não é deles, e sim da causa indígena.
Outra questão muito importante de “Minha Terra Estrangeira” é que talvez o próprio filme “perspectiva”, pela história da filha e a história do pai, que acompanha, meses antes da eleição, o líder indígena Almir Suruí em sua campanha a uma vaga de deputado federal (que inclusive consegue fechar uma parceria com o Google para monitorar os desmatamentos), não tenha percebido a força (condutora por si só) de sua protagonista, a ativista Txai Suruí e muito menos ouvido mais a sua língua Tupo Mondé, articulada, precisa, argumentativa e empática no modo como traduz as causas e consequências dos comportamentos humanos enquanto indivíduos sociais dependentes de atenção. Txai sim deveria ser candidata. Deveria ser a sucessora de Lula na presidência. Este é um filme de situações documentadas, ora por prévias, ora por durante, ora pelo depois de discursos realizados, por exemplo, como o da ONU em 2021.
“Minha Terra Estrangeira” é também uma obra de expressões definidoras sobre essa “guerra invisível” por formalidades sociais, em momentos fragmentados, numa luta para manter “a floresta em pé”. O certo a se fazer é “votar certo” a fim de que os “certos ocupem os espaços públicos”. “Deixar os arco-e-flechas guardados e usar o Iphone”, disse o indígena. Mas e aí neste desdobramento-epifania que este documentário reside: a de expor o constrangimento (e vulnerabilidade) da figura indígena entre brancos da “indústria”. E é também nesse exato instante que Txai traz uma questão que pululou em mim durante semanas, que se estendeu inclusive em outros debates sobre outros filmes em outros estações: a de que nós não podemos julgar as opções e os caminhos escolhidos de cada um. A ativista “jogou uma batata quente” tão estrutural em nossas convicções políticas tão radicais, tão agressivas e tão “donas de poder” quando disse que entende um indígena não votar em seu pai e sim nos partidos bolsonaristas, porque cada um sabe a dor, o sofrimento e a luta que teve que lidar a vida toda e complementa: “Chega uma hora que essa pessoa cansa. Cansa de ser tratada como lixo. Cansa de ter que se defender do que é o tempo todo”. Pois é, cansa mesmo ter que validar suas maestrias e nunca ser levado à sério. Isso buga complementa tudo o que já pensamos sobre o assunto. “Eu sou mais que minha luta”
Mas como eu disse “Minha Terra Estrangeira” tem DNA do olhar do “colonizador”, do branco, que não sabe lidar com o tempo narrativo. Que prefere a forma (já facilidade pela ideia dos perigos da Amazônica) à liberdade retratada do próprio conteúdo discursado. Ainda que simule uma aparência com a impressão da câmera caseira, amadora, que estende as cenas (tentando captar melhor a naturalidade), embasadas pela organicidade de um cinema direto de detalhes em montagem estética (como a viagem de rio, o quarto de hotel), “usando a melhor câmera, as melhores lentes, artifícios que o cinema indígena não tem”, disse Louise Botkay na conversa pós filme no Rio de Janeiro, ainda assim sempre será um filme estrangeiro sobre assuntos tão difíceis de mensurar. Na maioria das vezes, na narrativa de João (que inclui suas intervenções existenciais), a linguagem apresenta-se retórica, disruptiva, com trechos de vídeos de Txai para o New York Times. Sim, mas realmente a grande questão e força deste longa-metragem está mesmo no seu pós filme. No “fritar a mente” para que reavaliemos todos as nossas certezas. “Minha Terra Estrangeira” é na melhor definição um documentário plantador de sementes, da discórdia para alguns, de novas verdades para outros, com batom vermelho.