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Meu Tio da América

O outro inconsciente

Por João Lanari Bo

Festival de Cannes 1980

Meu Tio da América

O inconsciente é um instrumento formidável. Não só porque contém tudo o que reprimimos, coisas dolorosas demais para expressarmos, porque seríamos punidos pela sociedade. Mas também porque tudo o que é autorizado, até mesmo recompensado pela sociedade, foi colocado em nosso cérebro desde o nascimento. Não temos consciência de sua presença e, no entanto, ela orienta nossas ações. Esse inconsciente, não o inconsciente freudiano, é o mais perigoso. (Henri Laborit)

Meu tio da América”, que Alain Resnais realizou em 1980, é um filme sui generis, ou seja, sem semelhança com nenhum outro filme, único no seu gênero. Trata-se de uma pedagogia dramática, uma ilustração dramatizada dos conceitos que o cirurgião, escritor e filósofo francês Henri Laborit elaborou na segunda metade do século 20: um arrazoado que correu por fora do circuito acadêmico de psiquiatras e psicanalistas, gerando eventuais conflitos, inclusive entre egos, naturalmente. Laborit não ligava muito para exigências da pesquisa científica e restrições da prática universitária. Manteve-se independente da academia e nunca se ateve aos produtos formais que a ciência exige de seus adeptos. Como cirurgião, não era em princípio suposto que desse palpite em assuntos de psicologia social, ou ciências da mente em geral. Mas tinha antecedentes: quando trabalhava na marinha francesa, começou a experimentar a clorpromazina, originalmente destinada a ser usada como anestésico cirúrgico, para tratamento de quadros psiquiátricos agudos, obtendo sucesso no controle de psicoses e ansiedades. Eficaz no alívio das alucinações, delírios e pensamentos desorganizadores, a droga, ao contrário das terapias anteriores, tornou os pacientes incontroláveis mais gerenciáveis, sem deixá-los inconscientes. Laborit merecia ganhar o Nobel por essa intuição genial, mas não levou.

Em compensação, ganhou uma bela homenagem de Resnais, nesse trabalho singular e inovador que é “Meu tio da América”. O esquema do roteiro não podia ser mais cartesiano: três crianças nascem na França, um deles é filho de fazendeiros em dificuldades, outra, filha de proletários, e o terceiro, filho de burgueses. As crianças crescem, são educadas, elegem profissões (às vezes contra a vontade dos pais) e ingressam na vida amorosa. Certamente não são ratos de laboratório, mas seu comportamento ao longo da vida pode bater com respostas involuntárias de um rato de laboratório. Três atores de peso – Gérard Depardieu, Nicole Garcia, Roger Pierre – carregam a narrativa de modo, digamos, tradicional, com decepção, descontrole nervoso, irritação, frustração, euforia, raiva, medo… tal como reza o manual de altos e baixos emocionais do velho e bom melodrama. Eis que entra em cena um quarto personagem, com ares de protagonista: mais velho, falando em tom professoral sem forçar a barra – Laborit, o próprio. Ele não é fictício: interpreta a si mesmo, fala diretamente para a câmera, discorre sobre suas ideias e é validado por ratos de laboratório, quase-personagens de um enredo paralelo. O quarto personagem torna-se uma espécie de narrador onisciente e intrigante, portador de percepções que explicam e obscurecem a trama. Será que a humanidade, afinal de contas, possui o famigerado livre-arbítrio? Ou tudo à nossa volta é resultado do inexorável destino, conectado aos ditames religiosos, ou ancorado no mundo material da ciência?

Para ir à lua, devemos conhecer as leis da gravidade. Conhecer as leis da gravidade não nos liberta da gravidade. Apenas nos permite utilizá-la, esclarece o cirurgião-filósofo, em uma de suas intervenções. Resnais, o cineasta, nos lembra a todo momento: nós, humanos, achamos que escolhemos nossas melhores opções diante das decisões da vida, para evitar sofrimento e dor, e obter mais prazer e segurança. O filho do fazendeiro vai trabalhar num fábrica têxtil: sonha em estudar em Paris, mas sua namorada engravida e ele permanece no interior. A menina, comunista na juventude, foge de casa para entrar no teatro, e torna-se amante do menino burguês, alto burocrata da rádio nacional francesa. Ele, católico devoto, deixa esposa e filhos para morar com a amante. “Meu tio da América” usa a narração de Laborit para analisar comportamentos de três cidadãos franceses modernos, de diferentes origens sociais: podem ter sido instruções de atuação transmitidas de seus centros cerebrais, organicamente consolidados, e colocadas em nosso cérebro desde o nascimento. Não temos consciência de sua presença e, no entanto, elas orientam nossas ações. Tal como ratos de laboratório, os humanos adquirem, na pantomima de Resnais, cabeças de rato.

Os personagens de Resnais, ou de qualquer outro diretor: a equipe de produção, o próprio Resnais, ou qualquer outro diretor; e os espectadores deste filme, ou de qualquer outro filme – estão (estamos) sob a tutela de impulsos introjetados milênios atrás? Será isso verdadeiro e determinante? Com a palavra, meu tio da América.

4 Nota do Crítico 5 1

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