Meu Nome é Maria
Efeitos do abuso e da insistência do olhar masculino
Por Pedro Sales
Festival do Rio 2024
Existem filmes cuja fama os precede. “O Último Tango em Paris” (1972), de Bernardo Bertolucci, é um deles. Censurado em diversos países pelo “conteúdo pornográfico” e “obsceno”, o longa também é conhecido pela infame história de bastidor em que Marlon Brando usa manteiga como lubrificante em Maria Schneider durante determinada cena. A atriz não tinha ciência do que aconteceria, foi violada moralmente e sexualmente. A cena entrou no corte final. Em “Meu Nome é Maria“, a diretora Jessica Palud traz a trama biográfica da atriz, desde sua ascensão meteórica como estrela ao lado de Brando até os efeitos psicológicos que aquela agressão deixaram nela. A cineasta também expõe a problematização em torno da construção de sex-symbol no cinema e o reforço do olhar masculino na indústria, que objetifica mulheres e relega quase sempre o mesmo papel àquelas vistas como musas.
Ainda nos anos 1970, a crítica e teórica Laura Mulvey já questionava o papel da mulher no cinema. “O cinema dominante codificou o erótico dentro da linguagem da ordem partriarcal dominante”, escreve a autora, “num mundo governado por um desequilíbrio sexual, o prazer no olhar foi dividido entre ativo/masculino e passivo/feminino. O olhar masculino determinante projeta sua fantasia na figura feminina”. Portanto, o que Mulvey argumenta no artigo “Prazer visual e cinema narrativo” é o domínio do olhar masculino diante da mulher no cinema. Isso se relaciona tanto com a indústria quanto com a sociedade. É natural que o homem seja dono do olhar, uma vez que ele, na maioria das vezes, é quem opera, dirige e roteiriza os longas. O segundo ponto da sociedade é a questão da escopofilia, o prazer em ver a figura de outrem como objeto erótico, normalmente a mulher. O cinema, pelo seu cerne voyeurista, reproduziu – e ainda reproduz – tais códigos. Quando Maria estrelou o longa de Bertolucci, a própria atriz se tornou esse objeto erótico e passou a ser vista assim pelo público, produtores e diretores.
Filha do ator Daniel Gélin (Yvan Attal), a jovem Maria Schneider (Anamaria Vartolomei) também deseja trilhar os mesmos passos do pai e se tornar atriz. Com o primeiro contrato assinado aos 16, a primeira grande oportunidade da carreira surge aos 19 para interpretar Jeanne em “O Último Tango em Paris”, obra do diretor italiano Bernardo Bertolucci (Giuseppe Maggio). Ao lado dela, está a estrela Marlon Brando (Matt Dillon). Após a cena citada na introdução deste texto, a vida de Maria muda, ela desenvolve um quadro depressivo, dependência química e não se vê mais nos filmes, pelo menos não para fazer o que os diretores queriam: reprisar as várias cenas de nudez dirigidas por Bertolucci. Ao focar especialmente nesse período, “Meu Nome é Maria” torna-se um drama biográfico mais conciso em razão desta delimitação temporal. Jessica Palud centraliza a experiência no set e examina as consequências para a atriz.
Tudo começa em uma pretensa busca pelo realismo. Ainda com admiração por Brando, Maria diz: “Suas lágrimas no final da cena. Eu pensei que você estava chorando de verdade, soou tão verdadeiro. Não sei como você faz isso”. Ao passo que o experiente ator explica que não estava atuando e chorou de verdade. Esta cena antecipa a origem do abuso, não pela troca em si entre os atores, mas pela importância do realismo na equação. É com base nesse argumento de emoções genuínas e reais que Bertolucci não avisa a Maria Schneider o que vai acontecer, para “extrair” a sensação real, mesmo que ultrapasse a ética. “Eu não vejo atores, só meus personagens e o meu filme”, diz ele após a cena. Diante disso é que a atriz posteriormente afirma que se sentiu estuprada por dois homens, Brando e Bertolucci.
Em “Meu Nome é Maria” existe um cuidado com a ambientação, sobretudo para reproduzir o apartamento do longa de 1972. Além disso, a caracterização dos personagens consegue conciliar a própria identidade dos atores – Anamaria Vartolomei, de “O Acontecimento“, e Matt Dillon, de “A Casa que Jack Construiu“, – com a semelhança. De perfil, Dillon está igual a Brando por exemplo, mas de frente ainda é Dillon. A reprodução não se restringe à locação, mas também aos planos de “O Último Tango em Paris”, inclusive a cena da manteiga. Nesta que é a virada de chave na obra, Jessica Palud refilma a ação e também coloca a câmera como testemunha, com closes nos rostos de quem estava na equipe. Ali todos são testemunhas da violência e, em certa medida, cúmplices. Se narrativamente o abuso é um ponto de virada, o mesmo se dá formalmente. Há, portanto, uma ruptura na direção. Até este momento, o caráter clássico de Palud se sobressai, com uma decupagem de planos médios, closes, e um controle da imagem mais delimitado. Porém, com o isolamento familiar e início da dependência química, a construção imagética pende à instabilidade emocional da personagem.
A sessão de fotos, na ocasião do lançamento do longa, é filmada como terror. A trilha dissonante, os flashes das câmeras , o close da mão de Bertolucci na cintura de Maria são elementos que causam desconforto. Além disso, esta é a primeira vez que há quebra da quarta parede e o olhar triste de Anamaria Vartolomei penetra o espectador. A partir daí, ela mergulha em uma espiral autodestrutiva, com festas cheias de luzes e a escuridão de quartos onde se droga. Nos momentos de crise, Jessica Palud opta pela câmera na mão para trazer crueza à tela. Mesmo com essa dicotomia entre uma abordagem mais clássica e controlada e uma ligeiramente estilizada, algo se mantém em todo filme: a visão e perspectiva feminina. Por mais que Maria Schneider tenha se tornado quase um sex-symbol, a diretora rejeita a nudez, com exceção de uma cena pontual, mas sem carga erótica. É, de certa forma, um contraponto com a própria carreira de Schneider e uma resistência ao olhar masculino.
“Meu Nome é Maria“, portanto, mergulha na triste jornada de Maria Schneider, uma atriz, uma mulher que vê o sonho se tornar pesadelo. Profissional que exemplifica tão bem o olhar masculino na indústria – até o sadismo e abuso – ganha vida e dramaticidade com a interpretação de Vartolomei. Apesar de ser bastante eficiente em transmitir o isolamento, a diretora às vezes se apressa e não se aprofunda em questões centrais como a relação com a família. Depois de um tempo, fica solta. As cenas com Noor (Céleste Brunnquell), companheira que se torna por extensão codependente, também são rápidas e o impacto da presença dela não é completamente construído. Ainda assim, este é um longa que toca em uma das maiores controvérsias do cinema moderno e propõe um olhar opositor ao masculino quando Maria olha diretamente para câmera e diz: “Estou ouvindo você”, como quem convida outras mulheres a também denunciarem.