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Marinheiro das Montanhas

Em busca das águas vermelhas

Por Fabricio Duque

Durante o Festival de Cannes 2021

Marinheiro das Montanhas

Há em Karim Aïnouz uma necessidade de extraviar o próprio olhar. De se perder livremente em suas prisões existenciais, com o intuito de cessar a retroalimentação de uma iminência. Suas obras atravessam solidões, passados, esperas e origens em estágios orgânicos para assim encontrar a plenitude, não definitiva, de significados. De naturalistas curiosidades. Se o tema principal de seus filmes era o eterno confronto do medo de ir com o propósito inventado do ficar, como se um força gerasse inércia e torpor aos que sonham mudar algo que ainda não sabem, aqui, em seu mais recente filme “Marinheiro das Montanhas”, exibido na mostra Sessões Especiais no estranho e presencial Festival de Cannes 2021, o que reina é a coragem-sorte premiada dos turistas, seres que trazem na bagagem o rótulo do não pertencimento, que vivenciam casualidades e que atrasam a análise do sentir (um que de epifania estendida em uma interminável descompensação horária). “Marinheiro das Montanhas”, na verdade, apresenta-se como um abissal de metáforas. O próprio filme ajuda em sua cartela inicial com o “delírio febril que acomete aos marinheiros quando chega aos trópicos, principalmente à noite”.

Karim então se torna o próprio filme. Precisa se deixar experimentar a “qualidade de ser quente”. De alucinar suas razões. De aceitar embarcar de Marselha na travessia de um grande barco e sua magnitude das formas.  Se Maomé não vai à montanha… “Marinheiro das Montanhas” é acima de tudo uma carta de amor a sua mãe e suas “águas vermelhas”. Um “acerto” histórico-familiar com seu pai (“dos cartões postais”). Um encontro “namoro” com a Argélia (“lugar que sempre o assombrou” – a “meca dos revolucionários” – ensaiado em seu filme anterior  “Nardjes A.” exibido no Festival de Berlim 2020), como se o pretendente finalmente estivesse diante de sua paixão trocada por memórias e captações, trazendo as lembranças da “história de amor” de seus pais: Audrey Hepburn e Jean-Paul Belmondo. É uma saga. Uma odisseia de 54 anos (a idade do diretor). Karim, personagem, ouvinte e intérprete, mas sem aparecer na tela, apenas coleta olhares novos (de planos e contra-planos, ora silenciosos, ora incômodos, ora por conversas – que indicam Zidane e Oscar Niemeyer), idiossincrasias, costumes observados (tendo que vez ou outra explicar aos desconfiados o porquê de suas imagens) e datilógrafos em um praça (quase remetendo “Central do Brasil”, de Walter Salles, que por sua vez, é um dos produtores deste filme), tudo envolto em uma narração poética, de sinestesia visceral de “espremer os olhos”, de vulnerabilidade fisiológica de “cheiro, cor e cara”, de exposição caseira, e convidando o espectador a participar deste fado franco-árabe, que evoca imagens de arquivo e a existência imaginária de Iracema, entre o livro “Os Condenados da Terra”, de Frantz Fanon.

“Marinheiro das Montanhas” possui uma semelhante estrutura narrativa com “Aznavour por Charles”, de Marc di Domenico. E mais ainda com “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo” (que co-dirigiu com Marcelo Gomes). Karim não quer interromper o cotidiano (“Como sabem que sou estrangeiro?”), tampouco “mudar o ecossistema”. Para isso corta o cabelo. Quer invadir com pertencimento e ouvir histórias e miudezas, como as dos jovens que “amam a alegria e a liberdade” em uma “cidade fantasma cheia de vida”, mas que “prefeririam que os franceses nunca tivessem ido embora”, estranheza esta que talvez seja por “raiva do presente ou de um passado cheio de sangue ou por não acreditar no futuro”. O filme, uma “vertigem” on the road-feet, também quer a tradução etérea, cujo som adicional constrói ruídos, para dessa forma atingir o nível sonâmbulo entre a realidade e o sonho e entre o dormir e o acordar. Mas dentro de todo esse manancial de projeções subjetivas, mesmo com a prova do que se vê, há um erro de continuidade no sistema já equilibrado e pautado pelo mesmo saber do que encontrará. É uma falha na Matrix. Uma senhora abre o portão de um vilarejo “retornado” à simplicidade dos tempos passados já bem distantes, olha para a câmera e pede “Faz uma imagem bonita de mim e de Cabília (marco zero da “ancestralidade” de Karim)”. Essa cena desmonta o público, porque vem impregnada de uma resignação resiliente em um único ponto. A sobrevivência dos fantasmas com a esperança pululante (de realismo ingênuo) sobre o futuro.

Karim começa a ser afetado pelo tempo de sua permanência. Imagina sua vida ao contrário com seu “duplo”. Aprende sobre a mitologia da Argélia e que seu nome significa “generoso”. E sente a simplicidade de apenas existir. Sem mais. Ele encontra sua plenitude e isto o assusta. Precisa de um shopping. Um lugar de conforto. Conhecido. “Marinheiro das Montanhas” é muito mais que um filme  pessoal sobre descobertas, e sim representa uma terapia completa de se expor sem medos, receios, vaidades. Karim, ainda que com a presença da câmera, estava sozinho, se protegendo como podia para entrar em contato com aquilo que o assombrava. E nós, do outro lado, mergulhamos em seu olhar, nadando em águas vermelhas e encarando sem vergonhas os rostos de um lugar que agora não são mais imaginários. Sim, a realidade assusta. Há quem diga que o mistério de não saber é o que faz o homem. O longa-metragem foi aplaudido por mais de quinze minutos na exibição oficial-gala de Cannes, mesma sessão que aconteceu um protesto contra “Bolsonaro: gângster e genocida” e as 53000 mortes por COVID-19 no Brasil. “Marinheiro das Montanhas” é uma obra para navegar. Sem a pressa dos turistas.


TUDO SOBRE KARIM AÏNOUZ

(clique aqui ou na foto e saiba tudo)

4 Nota do Crítico 5 1

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